A sina da autoescola pelo acidente automobilístico trava um confronto crasso com a crença do acaso. Durante aulas, acidentes e mais acidentes são mostrados em forma de exemplo, na ideia de que um condutor poderá sempre estar nas condições de evitá-lo. É uma norma geral aplicada a um conceito de máquina, uma representação na crença veemente de que podemos escrever a punhos nosso próprio destino.
O tônus da obra de Richard Linklater (e quantos cineastas, hoje em dia, com tão pouco tempo de carreira, são possuidores de um tônus de obra, um esqueleto central de elementos estéticos e narrativos?), por sua vez, nada tem a ver com o automobilismo ou sua pedagogia, mas serve de agente de confronto da ideia do livre-arbítrio defendido nesses espaços. Em Linklater, o destino feito à mão depara-se sempre com a destreza inesperada do mundo, com um ponto x que torna-se questão central dos personagens, desfazendo seus universos até que os mesmos passem a desejar constituir outros.
Em Linklater, o acaso é uma via fora da rota, uma curva bem no meio da linha reta.
Pensemos no mote da trilogia Before até o fundamento de Slacker (1991): o destino enfrenta o centro de ação dos seus personagens obrigando-os a retraçar suas escolhas a partir dali, seja um encontro romântico que ocorre em um trem, seja em todos os tipos de encontros da casta hippie-“udigrudi” norte-americana do fim dos anos 90. O mundo atravessa-nos e torna-se impossível fazer o contorno. É preciso seguir.
Em Jovens, Loucos e Rebeldes (1992), a proposição é ainda mais fatal, pois o ponto de partida em que o filme se localiza é um local estanque: o fim das aulas, a entrada para o colegial. E não haveria uma prisão mais simbólica, um “em cima do muro” mais complexo ou libertador que as férias juvenis. Justamente por que é aí que o estado de inércia desta situação torna-se um agravante. Para os personagens de Jovens, Loucos e Rebeldes, ter de decidir o futuro – qual das vias pré-traçadas pela estrada da vida (continuar no time de futebol americano, estudar ou não advocacia, ir ao show do Aerosmith) vai se optar – é um mártir tremendo. Como se as estradas do futuro, todas elas, estivessem já traçadas em uma linha reta contínua.
Mas o acaso muda o jogo, achamos um atalho, uma manobra fora dos padrões.
O verdadeiro trunfo desse entre-meio assustador, afinal, é a resposta que Richard Linklater nos dá. Pois seus diversos tipos humanos da década de 70 (o mais velho bonachão e charmoso de McConaughey, o macho-alfa estúpido de Ben Affleck, o esportista dedicado que passa a curtir a vida, o moleque pé de maconha) irão carregar suas dilemas apenas por uma noite, por uma madrugada, até o amanhecer. Um dia na vida para mudar tudo, um incidente inesperado, um estalar de consciência. Com isso, Linklater refaz o atalho do destino pelas vias do inesperado – seus personagens são motores que encontramos e que decidiram cortar fora a estrada, sair da pista, tomar a decisão não protocolar.
Todo o filme joga nessa chave: primeiro haverá uma festa na casa de Pickford, até que seus pais descubram e o esquema vá para o escambal. Após ser espancado pelo grupo de veteranos valentões, Mitch foge pelo lado contrário do gramado de baseball, Pink, por sorte, estava lá; depois de ver a surra que o calouro toma, leva-o para casa, convida-o para um rolê. Assim sucessivamente. Eventos e mais eventos mudam e transformam-se no espaço febril de uma noite. Valentões e veteranos atrás de calouros, jovens em busca de jovens, jovens em busca de briga, de baseado, de cerveja, de adrenalina, de… vida.
A aceitação de seus destinos é algo que não cabe no espaço cênico de Linklater, pois a forma como o cineasta mira para todas essas figuras é muito solidária. O carinho e o fator humano se transvertem na segurança da encenação truncada, largada, quase dopada. Os atores todos se misturam e jogam em um espaço seguro, conjunto, letárgico. Estamos diante do fim das aulas e da estrada da vida, das decisões, mas cada vez mais aqueles adolescentes insistem em contornar o caminho pré-estabelecido e desistir da norma “padrão”. Haverá ainda uma festa, uma fogueira no mato, um último pé de fumo para ser consumido. E é bom, Linklater nos ensina, fazer tudo isso despreocupado, na onda da vida, deixar-se levar. Pois esse é um cinema sem julgamentos (não um cinema de moralismos, mas uma encenação de livre apreço, de carisma). Se for necessário burlar as regras, façamo-os. Enquanto for possível acreditar, seremos o calouro que vai chegar em casa ao amanhecer, depois da primeira noitada, do primeiro fumo, da primeira transa…. e sua mãe dirá que “dessa vez vai passar”.
Tudo vai ficar bem, nothing to worry about. O acaso ainda vai nos proteger.