Os corpos enjaulados

Tatuagem (2013), primeiro longa de ficção de Hilton Lacerda, foi lançado tem sete anos, mais ou menos na mesma época que comecei a estudar cinema. Até hoje, nunca o vi. Tampouco me veio o interesse de visitar o filme. Digo isso por duas razões: a primeira é para acertar as contas com uma ideia um tanto maldita, aquela de que o crítico ou o escrivão de cinema tem uma certa obrigação de conferir as obras que o circundam, ou que circundam seu contemporâneo. A resposta é simples e acho que não deveria levar a muito mais discussões: não, simplesmente. Parece-me um tanto genérico quanto improdutivo assistir aquilo que não tenho desejo ou não me instiga, pelo menos enquanto obrigação. É essencial, claro, deixar a zona de conforto, clarear as ideias, navegar por diferentes mares e cinematografias. Mas que isso não seja nunca uma exigência determinada por um certo circuito de lançamentos ou programações. Pelo menos como gesto crítico, de escolha de olhar e, especialmente, penso eu, de justeza com aquilo que se crê interiormente. É importante que venhamos aos filmes pois os queremos, de forma ou outra. Seja por amor ou por dor. Jamais por obrigação. 

A segunda razão pela qual inicio este texto falando de Tatuagem (2013) é ainda mais curta e direta que a primeira, apenas para esclarecer que não tinha qualquer contato prévio com a curta obra de Hilton Lacerda enquanto diretor, o que, ao menos para mim, impossibilitaria qualquer espécie de defesa de olhar por um autorismo prévio.

Esclarecidos esses dois pontos, portanto, pretendia tecer aqui alguns breves comentários sobre seu novo longa-metragem, Fim de Festa (2019). Comentários esses também não muito vastos ou largos, pois creio que o filme mesmo, em si, não permita tais articulações um pouco mais profundas e/ou árduas. 

Resumindo ainda mais as coisas, a questão para mim é elementar: Fim de Festa é uma tentativa espalhafatosa de representar um simulacro de urgências e debates que circundam o cinema brasileiro cada vez mais desde a metade da década passada. O fiapo mínimo de trama vai se costurando com uma mistura bem usual de costumes da juventude moderna: uma turista francesa foi assassinada em meio ao carnaval do Recife e o detetive Breno, interpretado por Irandhir Santos, precisa investigar o crime. Acontece que Breninho, seu filho – protótipo do burguês de esquerda com consciência de classe (afirmações próprias do filme) – recebia seus amigos em casa quando o pai chegara. A partir daí, estabelecem-se os conflitos.

Enfim, não necessitam muito mais meias palavras para dissecar este corpo fílmico: Fim de Festa tenta jogar com todas as matizes em voga no contemporâneo. É um filme que se constrói tentando evidenciar uma série de mazelas, uma série de preconceitos ou mesmo uma série de questões urgentes ao nosso tempo. Os jovens reacionários, os jornais de informações do submundo, o pai policial em conflito com seu filho e por aí vai. 

O que parece mesmo é que esse retrato do Brasil que pensa ser tão radical e reacionário, que se vê libertário até a última dose, soa mais do que nunca careta. Muito se falava sobre uma espécie de provocação ou ética sobre o uso dos corpos no cinema de Cláudio Assis, mas, honestamente, afora todos esses cacoetes de problematização crítica, além de uma filmografia no mínimo derrapante ou irregular, este parece ser o único cineasta dessa nova-velha onda de realizadores recifenses (Lírio Ferreira, Hilton Lacerda, Paulo Caldas) a realmente tentar emular algumas pulsões mais verdadeiras com o corpo, seja pela forma realmente arriscada com que aponta a câmera, seja pela falta de pudor com que escolhe iluminar e colocar textos na boca dos atores. Grosso modo: se for para ser radical, ultraviolento, contra o bom senso – com todos os pesos, riscos e dores que isso pode oferecer – que sejamos de verdade. Para o bem e para o mal.


Fim de Festa me parece mais um retrato engessado e covarde de tentar dar vazão a toda uma tônica de debate cultural, sexualidade, interracialidade e geracionismo que filmes de cineastas brasileiros muito mais antigos como Carlos Reichenbach, Edgar Navarro ou Paulo Sacramento conseguiam exprimir sem concessões ou mesmo sem medo de ser. Sem essa necessidade meio vazia de lidar com todos os acontecimentos do agora ou de desenhar caricaturas de classes tão delineadas e insossas que mais parecem se autodestruir do que de fato elevar algum debate ou apontamento. É um filme sem coragem, claro, mas acima de tudo é um filme que já nasce meio velho, que já filma esses corpos todos reconhecendo os signos que eles cristalizam, condenando-os a um ou outro discurso de radicalismo muito bem podado e domado pelo seu realizador.


Por Rubens Fabricio Anzolin

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