A chave-mestra do cinema de Harmony Korine sempre se deu dentro da segunda ou terceira camada que as suas imagens apresentam. No início, havia por fora a sensação de estranhamento, os corpos tortos e dilacerados de Gummo (1997), a esquisitice desengonçada de Julien Donkey-Boy (1999). Com o passar do tempo, a estranheza material (em tela, em corpo) se transcreveu em fluxograma; imagens que, à primeira vista, lidam com a hiperestilização da exposição do corpo, do tempo, do sentido. Esse fato levou Korine a ser relacionado por boa parte da crítica com uma maldita estética videográfica da gratuidade, sob a alegação da imagem opaca, diminuta de forma, a desserviço das artes cinematográficas.
O que se dá, a bem da verdade, no cinema desse diabo da forma, é que seus procedimentos atravessam o mundo real de maneira tão tênue e carnal que muitas vezes faz-se difícil acessar o portal da imaterialidade que compõe o seu universo.
É aí então que paramos em Spring Breakers (2012) e percebemos que, ao perpassar atentamente o prisma de corpos semideuses, Korine nos revolve diretamente no olho do furacão daqueles que são seus temas norteadores desde que começou a filmar: a relação entre o indivíduo e a quebra do bem-estar social; o eterno mito da derrota no sonho americano. Mais que qualquer coisa, Korine perpassa os seus procedimentos estéticos dentro de um jogo onde as personagens são meros aparatos do mundo, até um determinado momento de impulsão – o estalar de uma selvageria – que faz com que se voltem contra seus próprios mitos para quebrar a ordem geral.
De certa forma, o que faz de The Beach Bum o filme mais relaxado ou esticado de Harmony Korine é uma sensação bastante particular de sedação na ordem natural do mundo: o universo por onde rasteja o personagem de Moondog é um prisma etéreo constantemente desorganizado pela forma, um labirinto furtivo e indefinido de impossibilidades e inações; eis o mundo (ou, melhor dizer, um mundo) muito distante de qualquer geografia do senso comum – político ou estético. Korine nos leva para o terreno da desordem ao mesmo tempo em que movimenta-se a passos largos em direção à inércia.
Fica estabelecido, então, que a figura de Moondog será muito similar a de um eterno flâneur, sujeito de movimentos de rodagem pouco objetivos e muito mais furtivos na intenção de inserir-se nas redomas do caos. O mesmo se dará com todos os personagens ao seu redor, devidamente opacos e deglutidos dentro de um mosaico inconsequente de maconha, plantas místicas, vulgarismo e sexualidade. O mundo de Korine, aqui representado pelo paraíso artificial da Flórida, é uma espécie holograma onde não há mais ordem geral estabelecida, pois a ordem emana exatamente da desordem, desse fluxograma do caos. E se antes seus personagens existiam para questionar o mundo (as garotas de Spring Breakers, o casal de Mister Lonely), agora encontram-se em situação reversa. Em The Beach Bum não existe mais estrutura social para ser questionada: Moondog não é um forasteiro, um marginal, um desajustado; Moondog é o poeta, o artista, o criador. Impossível avançar contra si mesmo.
É dessa força inerte que se move The Beach Bum, orientada pelo flânerie mágico e inocente do bom-selvagem de McConaughey. Fica posto que o sentido ou a busca pelo mesmo não é mais um interesse e o que passa a reinar neste território é a lógica da negação. The Beach Bum é nada além que um movimento muito lento e sedado de sketches cômicas da vida devassa, um filme sobre o enjoy the day, aproveite a vida, carpe diem. Uma poesia que não existe senão como gesto único e carnal de celebração – versos e versões para as alegrias da existência boêmia
Logicamente que é um filme contra-cultural na medida em que se estabelece que não haverá nada mais para lutar – o importante agora é fugir da polícia com o comparsa Snoop Dogg carregando kilos de maconha mágica em um furgão colorido. Devo dizer, inclusive, que é bastante raro haver nos tempos de até então um cineasta que planeje resistir pelo gesto livre da celebração, é algo que lembra os filmes noventistas de Linklater, uma obsessão um tanto mística pela figura da juventude não só como forma de se estabelecer no mundo, mas justamente como forma de permanecer.
Se há algo essêncial que The Beach Bum revela para a urgência do contemporâneo é um gesto de cansaço, uma reação radical aos objetivismos. O filme de Korine sai pela culatra do discurso e do formalismo para caminhar cada vez mais para uma anti-estética do confronto, para uma necessidade de rir e de sentir como forma de evasão. Agora, o universo é uma floresta lúdica sem objetivos ou confrontos, completamente anestesiada em si mesmo, uma fumaça de inércia. E é justamente ali que pretende-se ficar, a navegar pelas paragens paradisíacas da Flórida com um baseado escatologicamente gigantesco na mão, observando toda a poesia de um mundo apartado do caos, sempre a postos para prestar-lhe a devida devoção.