Já faz algum tempo – mais especificamente, desde que passou a viver na Europa – que Abel Ferrara recusa-se a realizar qualquer cinema em que o ensejo principal não seja uma busca de um espaço e de uma amplitude para o corpo poder existir. Foi-se a época em que as imagens poderiam se desvelar aos nossos olhos para decifrar uma conduta interior dos personagens – lembrar aqui de duas cenas importantes de O Rei de Nova York (1990): o close na janela do prédio de Christopher Walken que dividia exterior e interior com as luzes da cidade e o final taquicárdico do mesmo filme, onde a câmera viajava ao redor de um homem invencível prestes a ser derrotado, cercado pela lei e pela cidade. Desde 4:44 (2011), a banda toca em outro tom – e o rítmo é uníssono: o poder e a sensação não se revela mais na textura da imagem, todas as batidas agora se dão pelo movimentar e rastejar dos corpos, e a batuta de Ferrara é descobrir seus meandros e carregar-lhes até estes limites.
Com a idade – seus quase 70 – o movimento também é outro. Tudo por aqui diminuiu de tamanho (o que não quer dizer, vejam bem, de intensidade). Não estamos mais diante de um desdobramento de gêneros, de um imbróglio de cinema que testa e atesta sobre as mais diversas facetas – nos anos 1990, Ferrara foi do filme policial ao filme de máfia, passando pelo terror existencial até cair no experimentalismo puro (vide New Rose Hotel [1998]). Desde que mudou-se para Europa, seus filmes concentram-se em um corpo só, um movimento só – ou, pode-se dizer, um homem só. Exceção talvez de 4:44, posto que é um filme de dois seres, ainda que a atenção dada ao personagem de Willem Dafoe seja sempre maior. (Enfim, apenas pequenas questões). O fato é que os últimos dez anos guardaram uma mudança importante no ritmo do cineasta, no ritmo de seu cinema e no esculpimento de suas teses. Se antes a via crúcis entre corpo e espírito era sempre concentrada em forma de discurso nos outros, nos grandes temas e gêneros, o recuo agora é monumental: Ferrara quer olhar para si.
Que Tommaso (2019) seja um self-made, com direito a própria esposa e filha em tela, não há novidade alguma. O curioso mesmo é notar como isto parece tônica já a alguns carnavais: importante lembrar que tanto Pasolini (2014) quanto Bem-Vindo à Nova York (2014), por mais que tratassem de figuras públicas de enorme conhecimento, eram não só filmes calcados principalmente no gesto corpóreo de seus protagonistas como também em suas sombras e pesadelos. Isto, afinal, Ferrara nunca deixou de ser – cineasta de sombras e pesadelos. Do brutamontês animalesco de Gérard Depardieu ao poetise de Dafoe em Pasolini, a única pauta é a cruzada do homem por suas próprias trevas, a batuta de ter que residir e encarnar (tomar posse, processo de possessão) uma carne tão atormentada. De 4:44 até Tomasso, o corpo e o rosto dos atores presentificam uma mirada que não está logo adiante, a ser descoberta, senão bem ali, dentro do estofo e da pele de seus protagonistas. Para eles (para Ferrara), navegar é preciso, atravessar o caminho das pedras para poder execrá-lo. Estrada para o exorcismo.
Daí surge a primeira e mais fundamental pedra angular de Tommaso: é um filme todo calcado no gesto de Willem Dafoe, nitidamente interessado na textura da pele e do flanêur errante e místico que a beleza exuberante de um corpo já em idade avançada como este apresenta. Se Dafoe é a carne (Tommaso), o espírito é Ferrara. Tommaso se equilibra nesta balança tênue entre o encantamento da beleza de um corpo tardio, artístico, sensível e espiritualizado e todas as trevas que este próprio corpo carregam no seu passado, no seu interior. O corpo é o andaime de uma equação em que o filme (o cinema) servirá de plataforma. Das mais banais (recorrentes pedidos de café e sorvete em bares e lanchonetes) às mais amargas (a literal retirada do coração, a crucificação em praça pública).
Por isso mesmo, Tommaso é um filme de ressaca – um filme que existe para relembrar que a embriaguez passa, mas suas marcas permanecem ali, esculpidas em cada uma das rugas do rosto de Dafoe e em cada uma de suas visões/imaginações vilanescas contra si mesmo. O que o delírio do personagem representa em Tommaso não é nada mais que um aceno de um espírito já tão torturado a condenar uma carne que tenta manter-se sã.
De uma forma ou de outra, é Ferrara fazendo um filme sobre seus próprios demônios (como sempre foi), mas desta vez é também um passo adiante: mais que tudo, é um filme sobre a impossibilidade e a tristeza de não querer mais lidar com estes demônios. De não poder mais conversar com eles téte-a-téte, cara a cara, estar diante do monstro para poder realizar o duelo. Também por essa razão, não deixa de ser um filme bastante solar, apesar da presença das sombras e dos delírios. Se o primeiro movimento de câmera que assistimos é uma pan levantando-se até à branquidão do céu, é justamente por que é ali que obstina-se chegar – caminho para a salvação.
No fim das contas, não será Tommaso que salvará a alma de Ferrara, mas poder enxergar a luz, a vida a renascer (a presença da filha tão jovem e pequena) já é um grande passo. Iniciar um filme com seu personagem alter-ego com 60 e tantos anos de idade a estar a ser ensinado, literalmente aprendendo uma língua nova (uma maneira de comunicar-se, estrada para entender o outro) é um gesto que apenas celebra e presentifica (carnifica) um sentimento quase inacreditável no corpo deste homem (realizador/ator/cineasta) – nas palavras do próprio médico do protagonista: I’m happy to see you alive. Mesmo que seja para curtir com a cara no sol a sua própria crucificação.
Por Rubens Fabricio Anzolin