O Curadoria Impossível é um exercício apaixonado de transformar impotência em vazão: alinhar semanalmente dois filmes brasileiros em curta-metragem e imaginar uma sessão dupla entre eles, depois, redigir algumas notas sobre. Escolhi chamar de Impossível pois não creio que tenham ainda se cruzado tais filmes e, a partir disso, tentarei imaginá-los e alinhá-los por puro prazer programatorial, crítico e curatorial. É apenas um experimento, no intuito de testar e apresentar/discutir mais o cinema brasileiro no formato de curta-metragem. Espero que gostem. Boa sessão.
Link dos filmes no final do post.
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O cinema brasileiro carece de uma missão importantíssima: redescobrir os filmes de Debora Waldman. Cineasta de apenas dois curta-metragens, Waldman representa uma faísca cintilante no cenário nacional dos anos 90, marcado pelo desmonte e a consequente retomada das produções. De lá pra cá, muita coisa mudou e muitos outros cinemas estabeleceram-se no Brasil – muitos deles (arriscaria dizer, os mais interessantes e plurais) provenientes das regiões menos centralizadas do país. (Em fevereiro/abril, redigi duas listas com 60 curta-metragens que talvez ajudem a dar essa dimensão mais recente). Voltando à Debora Waldman: em 1994, realizou um dos filmes mais eletrizantes que já aportaram por aqui: Noite Final Menos Cinco Minutos. Não haveria palavra melhor senão choque para descrever esta fita. São 10 minutos de uma espécie de Mad Max feminino existencial completamente entrecortado e com uma decupagem toda desfacelada. Alguma coisa que sai da mistura de Kathryn Bigelow e Ratos de Porão. Pois é, o cinema brasileiro realmente é incrível.
Dou outro passo, um pouco mais longe: em 1998, Debora Waldman realiza aquilo que é – até então (ou, pelo menos, até onde tenho notícia) – o seu último trabalho: Kyrie ou O Início do Caos.
Comento sobre Kyrie por dois motivos: o primeiro é bastante lógico: 1) forma uma sessão dupla riquíssima com Ecos Caóticos (Jairo Ferreira, 1975), especialmente por serem dois filmes em que o caos (imagético, sonoro, visual) da matéria cinematográfica é sempre um meio para a narrativa poder andar. Um segundo motivo, que considero ainda mais substancial é que 2) são obras calcadas em dois elementos essenciais para que se faça a desordem: a decupagem e o desenho sonoro. Ou seja: além dos cruzamentos evidentes, de todo o experimentalismo – de serem filmes que trazem o caos nos seus próprios nomes -, de uma vontade de bagunça, de desenlace, de não-normatividade, são dois filmes que só existem (e só podem existir desta forma) pois são muito bem concatenados. Dois objetos do caos extremamente organizados. Barulhos e arranhões que provêm da ordem.
Ainda sobre Kyrie e Debora Waldman: quem vier a (re)descobrir tal cineasta, irá deparar-se com uma pulsão latente. Não me parece ser exagero nenhum afirmar que seus filmes estejam entre as jóias mais resplandecentes do que se produziu no gênero em nosso país. E falo em pulsão pois este é o carro-chefe de Kyrie: o impulso.
Imagem 1: somos arremessados ao desconhecido, um zoom lento que enlaça o espectador para dentro de um bueiro. Corte 1: o rosto da protagonista, totalmente desconhecida. Visual de quem saiu do manicômio ou algo do tipo, sensação de morfina, sedação. Banda sonora 1: música ritualística alta que eleva o mistério, sempre subindo de volume. Somados os três, esses elementos geram um impulso – uma função enérgica do cinema – e somos impelidos a passar a andar junto com o filme.
Daí pra frente, o que se cruzará será um misto de mistério com histeria. A personagem a perambular (através do cinema, pois só é capaz de elipsar temporalmente graças ao corte) por entre ruas vazias e misteriosas de uma São Paulo povoada e impessoal, até chegar à noite soturna de encontros com sujeitos sinistros e uma consequente internação no manicômio. Enfim, narrar ou explicar o que acontece não é exatamente o intuito. A ideia mesmo é fazer perceber como Waldman opera esse caos narrativo-espacial e como ele cresce continuamente. De um lado, o som faz borbulhar cada vez mais o mistério e, de outro, uma relação espacial que a câmera apresenta exerce a ideia de disjunção. Ninguém neste universo tem nome definido, motivação definida ou mesmo algum sentido mais concreto. Estamos diante de uma pesudo ida ao inferno (ou seria ida ao bueiro?) em que as motivações jamais são postas em pauta. O interessante é que, apesar disso, largar estas imagens de mão é praticamente impossível, pois elas funcionam em um processo crescente de retroalimentação: a cada corte, uma camada nova entra na jogada, e outra, e depois outra. Seja no cenário, na iluminação, na personagem (que, de repente, passa a vestir um óculos escuro sinistro) ou até o cão – figura simbólica no filme, presença de malagouro – que aparece em meio às trevas para prenunciar o caos. Depois dele, tudo muda.
Quem se deparar com Debora Waldman, certamente será impelido pela cinética de suas imagens a caminhar com os seus personagens onde quer que eles estejam, pois o seu jogo, afinal de contas, é muito desajustado, desestablizado, cinema que é dança frenética. Acerca da história, do que chamamos narrativa, quase nada poderemos entender; isto, entretanto, não importa: o importante mesmo é estar ali e perceber que o caos, na verdade, é ordem por decifrar. Ordem que, por sinal, a cineasta decifra e esculpe muito bem, pois o seu signo primeiro é o mistério e o desejo da descoberta – como o zoom misterioso do boeiro, estrada e caminho de exorcismo que o filme irá traçar. Um mistério como esse fica difícil de recusar.
Pois bem, se comentei aqui que Kyrie e o cinema de Debora Waldman era um cinema que impressionava pelo impulso, acredito que abordar os filmes de Jairo Ferreira seja uma missão um tanto diferente. Primeiro, por que entre Horror Palace Hotel (1977), Os Gurus e os Guris (1973) e O Vampiro da Cinemateca (1978) existem vários cinemas que se entrecruzam e que se anulam também (além, é claro, de todos os seus outros experimentos audiovisuais e fitas diversas). O segundo motivo é por que acredito que seja importante debruçar-se sobre Ecos Caóticos juntamente com Kyrie para chegar a algumas conclusões e postulados, algo que me leva a querer unir estes dois filmes para serem vistos juntos. Enumero os detalhes:
A primeira coisa que me vêm à cabeça no filme de Ferreira é um movimento de síntese que acho muito bonito: prestar homenagem a um artista da palavra, o poeta Sousândrade. Mais que isso, imiscuir uma linguagem cinematográfica através dos impulsos de sua poesia. (Impossível não lembrar de O Poeta do Castelo [Joaquim Pedro de Andrade, 1959]). Lidar com o cinema como impulso (cruzamento imenso entre as obras de Waldman e Jairo Ferreira; entre esses dois filmes mais especificamente) é algo que sempre pode oferecer experiências radicais – visitas e revisitas ao inferno. Se no filme de Waldman o que servia de plataforma para construir uma energia muito intensa e particular era a montagem – sempre trocando e tresloucando a visão do espectador -, no filme de Jairo Ferreira é o desenho da banda sonora opera o exercício do caos (dos Ecos Caóticos) através de um processo de assimilação poética: narrar de maneira desorganizada misturas de estrofes e pensamentos que reiteram a posição do poeta Sousândrade diante da sociedade. De obra vasta, o escritor foi desconhecido durante significativa parte da vida, e só depois de Haroldo e Augusto de Campos revisitarem sua obra é que foi devidamente prestigiado. Os motivos para isso são muitos, mas elencar que sua poesia era bastante desconstruída para época talvez seja o mais essencial para entender as disjunções do personagem-filme. Sousândrade foi famoso por inventar na linguagem expressões não muito usuais e misturas idiomáticas (do idioma indígena ao inglês) bastante raras.
Aí surge a pergunta – e seu esquecimento, deu-se por que?
Jairo Ferreira responde em filme e com o filme: as atitudes mais lúcidas continuam sendo as neo-anárquicas (…) a linguagem hoje é vendida em comprimidos.
Cineasta e poeta sintetizam uma recusa em lidar com a linguagem dos comprimidos.
Interessante, ainda, citar aqui o termo lucidez, pois acredito que, ao fim de tudo, seja isso que une os dois filmes e os dois cineastas – a capacidade de fazer cinema com lucidez. Se Jairo Ferreira faz um filme anárquico – desconjecturado, anti-narrativo, desenquadrado, cheio de ecos literais – é pela plena noção de que é apenas dessa forma que a condição fundamental do que significa a poesia de Sousândrade naqueles tempos poderá vir à tona. Se Sousândrade era um ícone ignorado linguagem – da mistura dos idiomas, dos poemas extensos, uma figura maranhense no cenário poético (consequentemente afastado do centralismo) -, ou seja, um maldito, um anárquico, uma homenagem acerca dele só poderia vir em forma de um filme que faz de sua matéria-prima a anarquia e a desordem. O mesmo vale para as obras de Waldman, e especialmente para Kyrie: em um filme que recusa a concentração espacial, o decifrar dos códigos, organizar o desenlace entre os planos e os movimentos dos corpos é fundamental para que eles possam quebrar o regime da narrativa.
Nesses casos, o caos é absurdamente coerente. Viva o caos.
Por Rubens Fabricio Anzolin
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KYRIE OU O INÍCIO DO CAOS, DEBORA WALDMAN, 1998
ECOS CAÓTICOS, JAIRO FERREIRA, 1975