Um cinema desobediente: voz e corpo | Curadoria Impossível #2

O Curadoria Impossível é um exercício apaixonado de transformar impotência em vazão: alinhar semanalmente dois filmes brasileiros em curta-metragem e imaginar uma sessão dupla entre eles, depois, redigir algumas notas sobre. Escolhi chamar de Impossível pois não creio que tenham ainda se cruzado tais filmes e, a partir disso, tentarei imaginá-los e alinhá-los por puro prazer programatorial, crítico e curatorial. É apenas um experimento, no intuito de testar e apresentar/discutir mais o cinema brasileiro no formato de curta-metragem. Espero que gostem. Boa sessão.

Link dos filmes no final do post.

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A figura de Maria Bethânia é o fio condutor protagonista de dois curta-metragens que representam antíteses no fazer cinematográfico: Bethânia Bem de Perto (Julio Bressane e Lauro Escorel, 1966) e Ruína (Gabraz Sanna, 2016). Na verdade, falar em figura de Maria Bethânia seria uma simplificação, pois o que está em jogo nos dois filmes não é o que significa ou presentifica Bethânia em tela senão muito mais o que significa e presentifica o seu corpo (Bethânia Bem de Perto) e a sua voz (Ruína). 

Ambos os filmes são exemplares do que poderia-se chamar de um cinema desobediente, processos audiovisuais em que o que se estabelece como desejo em primeira mão nunca vai ao cabo ao certo. Se Bethânia Bem de Perto seria, inicialmente, um filme “a propósito de um show” – como ensaia o subtítulo da obra -, o mesmo acaba servindo muito mais como um retrato bastante jovial e intenso (bastante geminiano, tomando liberdade na expressão) da juventude e carreira de Maria Bethânia em meados dos anos 60: um misto de convívios e aventuras de uma cantora a despontar, suas trocas e performances com Nara Leão, Caetano Veloso, Jards Macalé. No fim das contas, o que Bressane e Escorel procuram o tempo inteiro é o corpo de Bethânia a existir defronte ao ecrã, um cinema que desliza e abre mão de um lado documental primário – tentar entrevistar a cantora, fazer perguntas, um cinema direto – para focar-se inteiramente em procurar sempre o movimento corpóreo de Bethânia a expressar-se, a trocar e fluir com os seus.

Nesse caso, a desobediência parte da própria personagem que é Bethânia, incapaz de congruir atenção a fita do filme e muito mais atenta a fumar cigarros e folhear revistas, compor arranjos e explicar como gosta de cantar – sempre oito ou oitenta, nunca no meio termo, em meio a um balé sonso ou desanimado. Desse modo, parece notável dizer que Bethânia Bem de Perto é um filme de movimento centrífugo – pois a bagunça, o desajuste, surge do cerne do filme, de seu elemento central, e vai cada vez mais tomando conta das imagens que Bressane e Escorel tentam traçar. Daí a sensibilidade no gesto dos cineastas de escolher colocar a câmera sempre em Bethânia, mantendo distância, mais habitando aqueles espaços para observá-la do que propriamente preocupados em retirar dela informações ou histórias. Eis então seu verdadeiro trunfo: pois, se o corpo de Bethânia – calcado nos mínimos gestos, principalmente no cintilar dos dedos e no traçar de um sorriso fresco – torna-se o foco do quadro, é justamente por que dele sairá a energia maior para que o filme existe, preenchendo com o corpo a câmera para juntos formarem uma equação de cinema.

E, se Bethânia Bem de Perto é um filme dito centrífugo, em que a energia da personagem surge do centro até que tome conta do todo, Ruína poderá ser dito então como um filme centrípeto, em que a personagem de Bethânia, agora bem mais velha e com cabelos esbranquiçados, estará posta no centro do quadro (do filme, matéria cinema) e o mundo todo fará um movimento para impedir que ela mesma consiga expressar sua voz. 

É, afinal de contas, um caso do cinema que se faz a partir do cinema que é impossível fazer-se, um belíssimo filme que se constrói muito mais pelas impossibilidades de nascer – e principalmente da beleza que existe neste gesto do impossível – do que pela vontade de fazê-lo. Essas justaposições são termômetros muito interessantes para  pensar em soluções e resultados de um cinema de erros: em Ruína, os sons da natureza, o latido dos cães, a existência de uma mosca ou uma abelha tomam o espaço de uma tumba, de um totem gigantesco que interrompem a leitura de Bethânia, até passarmos a perceber que não nos importa mais que a personagem consiga declamar aquele poema – e o filme deixa de ser sobre Bethânia declamando um poema – e sim a sua interação e a sua reação diante daquela impossibilidade da palavra – sua força maior, sua voz magnífica – de emergir diante do mundo. 

Ao fim, quando consegue terminar sua leitura, lá pela quarta ou quinta tentativa, Maria Bethânia esboça um sorriso e levanta-se, e é então que Ruína passa a ser regido por um outro regime de imagens: a limpeza e a objetividade dos planos fechados em Bethânia dão lugar a uma imagem pixelada de cachoeira, com a personagem a declamar versos com uma voz ressoante. É quase um exercício de cinema-pensante: como se a segunda metade do filme houvesse, enfim, aprendido algo com a primeira: que o som da voz só poderia ser plena quando unida com a natureza, pois os sons do universo existem no mesmo regime. Agora, não vemos mais a imagem da cantora a tentar lutar contra os sons do mundo, mas podemos enfim deliciar-nos com a força de sua voz, pois finalmente Gabraz abraça a desobediência do mundo em imagem (e som, a água da cachoeira a cair nas pedras) para permitir que Bethânia seja apenas um espectro que faz do cinema poesia e dos sons uma dança da luz. Retornamos à ordem natural do mundo. Não é preciso mais desobedecer. 

Por Rubens Fabricio Anzolin

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Bethânia Bem de Perto, 1966, Julio Bressane e Lauro Escorel
Ruína, 2016, Gabraz Sanna

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