Existe algo fincado bruscamente no coração de Uncut Gems que pretende carregar-nos até o final da toca do coelho. Um elo ou pacto com o demônio que irá levar-nos até onde nada é permitido, ao fundo daquilo que as paredes duras da sensorialidade insistem em negar. Este filme restaura alguma capacidade que detinha William Friedkin (vide Cruising, 1980 e To live and die in L.A, 1985) de filmar corpos em movimento a chocarem-se e debaterem-se até o limite da moral ou da ambição. Uncut Gems é a experiência tardia mais mistificadora e purgatória que o cinema americano geriu desde que os anos 90 encerraram-se para Abel Ferrara. E não será necessária falar sobre uma doença capitalista que é o cerne de todo e qualquer quadro do filme, presentificado na ambição doentia de Sandler, na sua fé inadiável do tesouro judeu prometido, nas cobranças que Howard recebe a cada esquina que passa, no esgarçar extremo de seu eletrocardiograma até os últimos limites daquilo que o sistema nervoso suporta antes de dinamitar. Acerca disto, quase tudo já foi falado. O que falta notar é que, antes de qualquer coisa, este filme carrega em seu âmago a chave-mestra para acessar o portal dos sentidos, atravessar a toca do coelho, rasgar a tessitura da imagem para encontrar de vez aquilo que separa corpo e alma. Adam Sandler é o corpo-estímulo que dá o estopim da caçada brutal em busca do paraíso, o homem que vê na pedra mística o pivô de sua emancipação carnal que o alçará ao paraíso. Uncut Gems é sobre todos os demônios modernos que o herói enfrentará nos portões do purgatório. E que esteja claro que não haverá salvação – pois, aquilo que a carne não punirá (e o início do filme prescreve um exame de rotina exemplar), a força mística aurática da sensação, do cinema (a montagem tonal de Bronstein, a trilha-colagem de Lopatin, a luz sedutora de Khondji) dará conta de consumar. Pois Uncut Gems é ao mesmo tempo tudo e nada: carne e alma, paraíso e inferno, mas é fundamentalmente sobre a força mística que atravessa as tais pedras do filme, sobre o que elas guardam de magia. De cinema.
Se diz-se bastante das pedras mágicas especiais, do tal tesouro, do versículo bíblico que promete a prosperidade e o futuro, o “no fim, vencerá”; é estritamente necessário recordar que, no late capitalism, este happy end do alçar-se aos céus nunca existiu e tampouco existirá. Daí falar que Uncut Gems mira bem ao fim da toca do coelho. Pois a toca do coelho, na verdade, é o espelho envidraçado, não o portal de passagem: não encontramos o tesouro, o sonho, a chave; encontramos a carne, nós mesmos, o reflexo. Daí também entender que Josh e Benny Safdie levam-nos ao fim da toca pois o desfecho do personagem de Sandler é o único destinado a quem conseguir atravessar bravamente a tão dura travessia de desafiar o destino. Pois Howard não está condenado ao triunfo, sua bravura é justamente a de resistir inapelavelmente a derrota a cada segundo que passa. E que se entenda, afinal, que no apagar das luzes não haverá jamais tesouro algum, redenção alguma – da toca do coelho ninguém passa -, pois o único valor a ser desenterrado em vida estava nas terras africanas da Etiópia, as gemas, a passagem para o portal, para o cinema. Dali em diante, tudo é desfecho, tudo é fantasia, tudo é miragem. O fim é apenas um e já estará traçado. Bom aproveitar enquanto é tempo.