O abismo das alianças, o mundo em catacumbas | Olhar de Cinema #1

Antes mesmo de assistir ao filme de abertura da edição do Olhar de Cinema fui atacado por uma curiosidade latente: a presença de dois dos profissionais mais qualificados do cinema contemporâneo na equipe técnica – o fotógrafo Leonardo Feliciano (de Branco Sai Preto Fica, Arábia, Baixo Centro) e o técnico de som Vasco Pimentel (que acredito dispensar apresentações, mas, por via das dúvidas, reitero tratar-se do responsável pela mistura de boa parte dos filmes de Miguel Gomes e Teresa Villaverde, dois supostos nortes do cinema português de hoje). Explico o motivo da curiosidade que me cativa: qual seria o papel destes dois profissionais de origens e etnias distintas diante de um filme que se conduz à performance das representatividades no Brasil de hoje? Eis aí, é claro, uma potencialidade criativa que nasce das fricções e confluências que corpos tão variantes podem acrescentar para o exercício da mediação cinematográfica – ainda mais, em se tratando de um filme que pretende fazer da interação entre equipe técnica e performancers o seu mote formal. 

Explico a razão dessa tal curiosidade pois acredito que ela sirva para delinear a lógica de pensamento que ronda Para Onde Voam As Feiticeiras (Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral, 2020). Eis, definitivamente, um filme que pretende ir às catacumbas das lógicas de representação e representatividade tão em voga no Brasil de hoje. Mais que tudo, é um exercício de estender a câmera para capturar uma variedade de corpos não hegemônicos – o trans, o negro, o indígena – a interagir com a cidade e com seu respectivo corpo social. Grosso modo, é um filme que se articula entre dois regimes bastante específicos – o da interação/intervenção destes corpos sociais no espaço urbano e o da entrevista/performance destes mesmo corpos diante da câmera. Apesar disso, deste suposto díptico na forma de apontar a câmera, a tática dos cineastas permanece sempre a mesma: dar voz e espaço para estas manifestações, tentar capturar essas ideias que, em suma, são logicamente essenciais nas políticas do cotidiano e do comportamento humano, mas que, em momento algum, em tela, estão dispostas a encarar este conflito de ideias.

Em Para Onde Voam As Feiticeiras fala-se muito de alianças. Não somente no ato de fazer alianças, interagir nestas construções, dialogar sobre o quanto podemos ceder ou permanecer em um espaço. O filme mesmo, por si só, pretende-se uma aliança, levada à frente pelo exercício de comportamento e convivência de um conjunto de atores sociais que representam, cada um individualmente, a gama diversa dos corpos ditos não hegemônicos. Pois então, já que as alianças são, majoritariamente, a pauta em questão, falemos mais sobre elas: um filme (principalmente no regime estilístico documental, de captura do “real”, do agora) não é ele própria uma aliança?

Eis o motivo pelo qual comentava no início deste texto sobre Leonardo Feliciano e Vasco Pimentel, ambos membros da equipe técnica. Faço-me uma pergunta: Para Onde Voam As Feiticeiras não deveria ser uma aliança entre cineasta e estes corpos políticos? Ou, ao menos, uma tentativa de?

Longe de mim tentar julgar qualquer obra por um pressuposto do que ela deveria ser, isto não. Mas acredito estar claro que a história do cinema revoga – ela mesma na sua concepção fundamental de troca, seja da câmera com o realizador ou do mesmo com o seu objeto documental – a ideia de partilha, tanto de interesse quanto de confronto. E é exatamente nesta chave que Para Onde Voam As Feiticeiras vai quebrando-se pouco a pouco, até adentrar no fundo de seu abismo. Pois este não é um filme de alianças, justamente pelo fato de que renega uma ideia que ele, propriamente, filma: quando Preta Ferreira comenta sobre o movimento das ocupações e dos moradores de rua, ao discutir com um dos outros corpos que também já fez parte desta ocupação, a personagem coloca em pauta o quanto é necessário respeitar a legislação prévia das ocupações. Ao recusar o argumento de Preta, o rapaz apresenta um contraponto, o fato de que esta legislação deve também abarcar as suas condições (sejam elas de gênero, cor, raça, sexualidade etc). Aí, estabelece-se um confronto. E é do confronto que deveria surgir, ao mínimo, perguntas para se construir uma aliança. Pois uma partilha – um filme – que pretende-se sobre este juntar e desconstruir de corpos, deveria, ao menos, levar à tona estes conflitos, já que, como ele próprio afirma, estes são a base para erguer um conjunto de fortificações. 

Mas a obra das irmãs Caffé e de Beto Amaral nunca está interessada por este tipo de detalhamento, de incômodo. Sua preocupação maior é a de tentar dar legitimação à existência destas identidades sem colocá-las em xeque umas com as outras. E não falo da necessidade destes corpos em, obrigatoriamente, conflitarem. Trata-se mesmo de filmá-los – já que é este o desejo – na plenitude de suas contradições. Até por que, e isto está no filme, eles próprios se contradizem – e, se não fazem isto, ao menos discordam um dos outros. Se a ideia é mesmo a de desconstruir, de falar para público, câmera, para o pastor do culto nas ruas sobre a existência da diversidade, por que não permitir que esta diversidade complexifique suas questões? Exponha elas em plenitude, justamente neste espaço que se pretende aberto e propício para isto?

Estes gestos não ocorrem, em suma, por que o trio de realização toma como medida um gesto de segurança: nunca colocar-se em pauta. Quem filma, no fim das contas, está disposto a questionar todas as hierarquias, explicar téte-a-téte as contradições dessas vivências, sem nunca lembrar que, ao filmá-las, os realizadores colocam-se também nestas contradições. 

Eu pergunto, por que é que em Jardim Nova Bahia (1971) Raulino passa a câmera para a mão de Deutrudes? As respostas podem ser várias, e talvez nunca fujam da lógica de que, por mais que o realizador passe à câmera ao socialmente oprimido, jamais será ele quem fará as imagens. O que acontece, entretanto, é que ao menos Raulino prevê que exista nesta atitude um gesto de troca, uma tentativa de aliança. Raulino entende que, mesmo que a aliança não ocorra – e talvez nunca possa ocorrer – tentar fazê-la é a única forma justa de encenar esta troca. Sem pretender-se cineasta salvador, tampouco sem inocentar-se da culpa de apontar a câmera.

Para Onde Voam As Feiticeiras, em momento algum, preocupa-se com esta culpa de filmar, de colocar-se, também (já que a câmera por si só é um corpo) em xeque. É mais preocupado em tentar tatear na mediação entre equipes e corpos filmados uma solução para os abismos que ali mesmo, em uma ruazinha da cidade de São Paulo, possam se apresentar. E, ao fim, o filme acaba por cavar buracos mais fundos para este abismo, pois prefere explicitá-los na segurança de Judith Butler a ensinar sobre política e representações sem nunca fazer isto de fato no corpo-a-corpo entre técnica, cinema, corpo e contradição. A aliança se quebra, pois nunca existiu. A plenitude da partilha acaba em derrocada diante medo de colocar-se em pauta. As feiticeiras não voam, e o filme sequer pretende explicar quem são elas. O feitiço mesmo é dos cineastas, que capturam uma interação não-hegemônica sem nunca perguntar-se qual o limite desta interação. Seja da câmera em si ou dos corpos uns com os outros.

Por Rubens Fabricio Anzolin

Filme visto no 9° Festival Olhar de Cinema

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