Destruir a cidade, construir fortalezas | Olhar de Cinema #4

Mesmo depois de ter atravessado Canto dos Ossos (Jorge Polo e Petrus de Bairros, 2020) e Sertânia (Geraldo Sarno, 2020) – dois dos filmes que mais me moveram para lugares distintos entre as rachaduras a hachuras do cinema brasileiro -, a primeira imagem do 9° Olhar de Cinema que surgirá em minha cabeça, passados os anos, deve ser a de Yuri Yamamoto a desaparecer em fade diante da parede rosa de um bar-karaokê em Pajeú (Pedro Diógenes, 2020). Até poderia tentar desvendar um por um os motivos do arrebatamento causado em mim por aquele corpo transfigurado de um jeito tão cinema brasileiro de soslaio – do filmar na rua e ao vento inventando consequências -, mas talvez nem conseguisse encontrar as palavras e medidas certas para fazê-lo devidamente.

O que acontece é que a imagem de Yuri contra a parede dá conta de explicitar as reivindicações de Pajeú de forma exemplar: antes de tudo, estes fotogramas representam uma dobra maneirista (em algum lugar entre o horror e a transmutação) que reitera o sumiço como parte do processo de construção das cidades, das paredes e das redomas. O corpo de Yuri jamais desaparece, mas sim funde-se à parede do salão de festas. O humano não atravessa para outro plano – não se trata de morte, de partida -, mas sim torna-se parte do cimento que rege às estruturas da arquitetura em questão. As paredes, na verdade, não são uma mistura de areia e água. As paredes são os corpos, material humano, apagamento – e pensemos em que corpos são estes também (?), que somem costumeiramente junto às populações que dependem do rio Pajeú. A resposta, penso, está clara. Mas, diante da lógica de pensamento fugidia que o termo cinema de afetos tem causado no Brasil, Pajeú talvez surja para vigorar um novo tratado formal quando falamos daqueles que somem, que desaparecem e que, costumeiramente, têm suas vozes caladas como se fossem parte de uma parede muito bem acimentada de apagamento social.

Enfim, não são minhas pretensões defender Pajeú por essa lógica de justiça social – acho que vai bem além disso, mas senti que seria importante dar a ver um exemplo de gesto cinematográfico que consegue muito bem concatenar pautas com formulações estéticas, algo que sinto bastante falta. Felizmente, e muito além disso, das tais pautas e afetos – Pajeú também é uma viagem ecológica ao coração das relações entre o corpo social que sustenta uma cidade. A passagem da praia, quase ao fim do filme – beirando uma entrevista, uma alternância de regime -, serve muito bem para decodificar estes estímulos. Maristela, a personagem principal, professora de Educação Física em uma escola de Fortaleza, vai em busca de um expurgo para os devaneios lynchianos sobre o rio Pajeú que lhe aparece em sonhos recorrentemente. É nesta toada que o filme vai se guiando e alternando, porque antes mesmo de ser sobre uma relação metafórica entre corpo e cidade (algo que muitos críticos vinculam de forma desinteressada ao cinema de Apichatpong Weerasethakul, um dos mais urbanos cineastas do contemporâneo), Pajeú é sobre como as relações entre corpos (sociais, militares, arquitetônicos e civis) constroem uma morada.

O périplo de Maristela em busca dos mistérios do riacho Pajeú leva a personagem a cruzar caminhos diversos, do encontro com um oficial de exército bolsonarista (algo que não está explícito, mas que o tipo de relação histórico-social com o rio presente na fala do personagem já evidencia de cara) aos moradores da costa do riacho, talvez as verdadeiras vítimas de apagamento do Pajeú. Entre os lapsos experimentais de sonho até o abraço firme em alguém que acabou de se conhecer, Pajeú existe plenamente para exemplificar que tanto a ruína quanto as fortalezas são partes de uma construção coletiva – emaranhada, sim, sempre pela história, sempre por um regime político que privilegia alguns mais que outros, mas que é na constância da troca entre indivíduos do corpo social, do corpo da cidade (e que, como Yuri, muitas vezes tornam-se cidade, parede, ou rio) que se constrói a memória. E a memória poderá sempre resistir ao apagamento, pelo menos enquanto alguma parte deste tal corpo social (uma professora de educação física, tal qual Maristela, quem sabe) fizer o exercício de reproduzi-la nos segmentos em que se insere, seja abordando um bando de estranhos na praia, seja enquanto canta desafinada em um karaokê. Pois o coletivo é parte destas construções, a ruína e as fortalezas, também. 

por Rubens Fabricio Anzolin

Filme visto no 9° Festival Olhar de Cinema

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