Diário perdido, anotações esparsas | Olhar de Cinema #5

Diário perdido


Escrevo este texto na certeza de que, assim como o cinema, eu sou um fingidor. Não posso mais me iludir. Quando dei início ao projeto de cobertura do Olhar de Cinema, quase um mês antes do início do festival, pensei que seria possível dar conta de ver todos os filmes brasileiros em exibição. Prometi a mim mesmo – e nas intenções de cobertura – que assim o faria. No momento em que escrevo, com o player pausado em Um Animal Amarelo (2020), de Felipe Bragança, reconheço a derrota. Deixei algumas (muitas, talvez) coisas pelo caminho. Afinal de contas, festivais são um processo – curatorial, programatorial e emocional -, assim como coberturas. É tudo uma questão de escolha, de seleção: qual filme entra, qual filme sai, sobre qual filme terei de ver, escrever, qual filme deixarei passar. Grosso modo, experiências do sistema cinematográfico que nos carregam, cedo ou tarde, à escola da desistência: chega um momento em que é preciso ceder, saber a hora de parar. Mas, se chamo a desistência de uma escola – principalmente nesse jogo de exibições, filmes, pessoas e, claro, escolhas – é porque pretendo vê-la mais ou menos como Borges gostava de pensar. Em Sete Noite, escreve: “Steiner dizia que quando alguma coisa acaba devemos pensar que algo começa. Temos uma imagem muito precisa e, às vezes, dilacerada do que perdemos; mas ignoramos o que pode vir em seu lugar.” Por isso mesmo, escrevo tendo em mente que deixei-me levar pela escola da desistência, pela escola da derrota (melhor dizer?). E, se sigo por este caminho, não é senão pois ando em busca desse tal algo que começa, do tal processo. O que vem junto com as coisas (vide, filmes) que deixei pelo caminho.

Tentei imaginar este texto como um diário, que é a mesma maneira como tinha imaginado esta cobertura: um diário comentando cada filme visto no dia, algumas páginas por dia, íntimas confissões crítico-cinéfilas semanais. Acho interessante pensar em outros modos de se fazer crítica, de se exercer o pensamento cinematográfico. Quer dizer, é lógico que quando pensei em cobrir o Olhar de Cinema com “textos-confissões” (em primeira pessoa, como prefiro escrever) jamais tinha em mente não abordar os filmes vistos pelo que eles são, sua forma e seu conteúdo. Eles seriam o centro de todo e qualquer relato. Talvez tenha chegado perto disto em um dos textos, sobre o Programa 1 de Curtas da Mostra Competitiva, mas senti que, no fim das contas, esse processo de escrita não coalhava. Não que não seja interessante talhar ideias sobre desenhos de uma mostra ou de um programa – (inclusive, acho um desafio e tanto, coisa que não vejo muito se repetir por aí, exercitar palavras não apenas sobre filmes, mas sobre um recorte deles dentro de uma programação, de uma lógica histórica, contemporânea, que seja) – mas talvez não tenha sido minha praia nestes dias de cobertura.

O desafio entre tempo e consumo que um festival de cinema online nos obriga a travar é meio abissal. E, em meio a isso tudo, o trabalho ainda. Tudo bem, faz parte, e nem de longe isso é uma reclamação. É, talvez, mais que tudo, uma confissão. Uma reflexão sobre um processo. De escrita, de cobertura e de sentimentos que esses últimos dias carregaram em mim. Se não consegui escrever sobre programas em específico, não o fiz pois as condições não permitiram. Mas também porque sentia que, ao fazer tentar isso em tão pouco tempo, deixava de lado uma vontade de jogar com os filmes corpo a corpo. Esmiúça-los um pouquinho mais, chegar perto de seus tecidos, abri-los, observá-los com calma e cuidado.

Tudo isso se deu na medida do possível, nos horários mais noturnos, é claro, momento em que todos dormem e eu consigo chegar o mais perto possível do que seria o ideal em um festival de cinema. (Não gosto muito do termo ideal, então diria protocolar, ainda que creia guardarem o mesmo sentido). Entre uma pausa e outra para café, cigarro, bananas, ler textos dos amigos e mensagens de “e aí, que tal esse ou aquele filme”, se deu a labuta. E, no fim das contas, acho que é isto: estes modelos de programação online dão muito mais trabalho – nos aproximam de alguma forma (mais que tudo aproximam os filmes de outros espectadores que não os convencionais), e nos afastam de outras tantas. Eu, daqui do Sul, lado mais frio desse país, consegui sentir um pouquinho dos ventos que sopram lá em Curitiba.

Acompanhei com carinho a escrita dos amigos, o que não me parece ser tão habitual entre colegas. Fiquei feliz pelos que vi me acompanharem. Ainda espero, quem sabe, tornar este processo um pouco mais humano, poder trocar leituras de textos por conversas após sessões (não porque textos tenham um menor valor, mas por sentir falta de trocar ouvindo o outro, sentir o entusiasmo, a empáfia, aquilo que os filmes nutrem na gente na hora do subir das letrinhas dos créditos). 

Sempre, desde que comecei a escrever, me questiono muito se chego a algum lugar, acho que sou muito difícil com conclusões. E esse texto, afinal, talvez não chegue a lugar algum. E daí também a vantagem de escrever sem um compromisso de concluir qualquer coisa. Afinal de contas, isto é (ou era para ser) um diário. Sem maiores compromissos de alguém que escreve por exercício e paixão, sem remuneração ou garantias de leitura. 

Para que esse texto não acabe apenas dessa forma, anexo abaixo comentários sobre os demais filmes que vi (e que por aqui não receberam um texto com maior cuidado). Ao todo, foram 25, um número que considero, no máximo, razoável. E também sem pretensões futuras de perder a cabeça para dar conta de aumentar essa cota. Deixo também um grande viva aos filmes que deixei pelo caminho – os que fiz por gosto e os que tive de fazer por cansaço, tempo ou desistência, nessa loucura que é um processo de cobertura. Espero encontrá-los de novo algum dia, em condições melhores, talvez em alguma sala de cinema, quem sabe. Sei também que não sentirão minha falta, afinal de contas, se eu não conseguir encontrá-los, haverá também quem o faça, quem o tenha feito e ajudado a pensar suas lógicas e códigos às suas maneiras. Um dia, talvez, eu chegue lá. Por enquanto, permaneço escrevendo este quase-diário de notas, construído por filmes, ideias, trocas e, sem sombra de dúvidas, sobre todas as outras coisas que deixei pelo caminho.

***

Anotações esparsas 

Sertânia (Geraldo Sarno, 2020)
Confesso que tive medo de escrever sobre Sertânia por algumas razões: não sou o maior conhecedor da obra do Geraldo Sarno (não que precise ser conhecedor de obra alguma para escrever sobre, mas isso me gerou alguma insegurança); o fato de talvez ser o melhor filme brasileiro que tenha visto neste ano (nesta década, neste século?). Acho que talvez faltem palavras para descrevê-lo com exatidão. Gostei muito de algo que li – como se o Cinema Novo fosse Arte de Vanguarda e Sertânia fosse mais ou menos a Vanguarda da Arte. Me interessa muito a lógica do cinema de palavra, desse cinema que dá nome às coisas. “Meu cumpadi Antão Jararaca, o Gavião. Bom te ver, meu mano”. Tá aí coisa que eu não via reproduzida no cinema brasileiro tem algum tempo, e que me interessa muito. Além disso, é uma lógica de anti-épico e anti-eztetyka abissal. Algo como encontrar consciência em meio a um delírio e perceber que, na verdade, o delírio é muito mais racional/real que o cotidiano. Como entrar nas portas do céu para descobrir o inferno. É o Brasil. 2020, 2010, 1500. E mais um pouco. E ainda mais. Um portal, uma passagem. E “fica comigo no momento dessa passagem, meu mano. Já tá tudo clareando”.

Cabeça de Nêgo (Deo Cardoso, 2020)
Me interessa muito o movimento de tentar posicionar os filmes de hoje frente a uma história do cinema brasileiro, não como saudosismo, mas como corrente mesmo, como trajetória – influência, confluência, recusa, agito. Acho que é um gesto importante e que sinto bastante falta. Olhar um filme em relação ao seu cinema implica não só consumir cinema brasileiro como também entender que ele não diz respeito só ao que foi feito/visto/comentado nos últimos dez anos (algo que também não desqualifica essas linhas de produção). Onde quero chegar com isso? que Cabeça de Nêgo é acima de tudo muito curioso como um desenho de cinema que renega certas logísticas atuais (acho que a do “naturalismo” deve ser a mais corrente) para tentar deglutir uma influência lógica de estilo do Spike Lee anos 90 na sua própria configuração. É meio que o tipo de relação que Sganzerla tem com Welles: não é a cópia nem a ode, é a reescrita, uma fagulha pra acender outro fogo, nesse teto de terceiro mundo que nos assola tanto – e que impede que O Bandido da Luz Vermelha seja Cidadão Kane como também impede que Cabeça de Nêgo seja Do The Right Thing / Malcolm X / Jungle Fever. E graças a deus esses filmes não são isso. Por que eles são outras coisas, eles são mais. Eles são nossos. Parte da nossa história. De perdas e vacilos. E linda também justamente por isso.

Memby (Rafael Castanheira Parrode, 2020)
Filme delírio e filme criação. Das coisas que mais me encantaram esse ano. A lógica de como no cinema, dependendo da costura, da tessitura e da textura que as coisas têm, a gente pode sair do quintal de casa e chegar aos confins do universo. Mas é antes de tudo um cinema de constelações, que atravessa a constelação das imagens, do imaginário de suas origens – do filme experimental, é claro – para se refazer de novo e de novo e de novo, ad infinitum. Eu entendo que haja uma influência muito clara de Bruce Baillie, mas até aí não tenho incômodo nenhum quanto a isto. Me parece sim um exercício muito drástico de arrancada de narrativa para chegar a… lugar algum. É como ir da galáxia ao interior do feto humano, mas sempre lembrando que, a partir da lógica das imagens, das costuras, essas coisas são apenas uma argila para que possamos moldá-las de todas as formas possíveis. Nesse sentido é um filme curioso, um filme de cura. Por que retém em 20 minutos toda essa fé que o cinema possui como um grande artesanato de sensações e convenções.

Canto dos Ossos (Jorge Polo e Petrus de Bairros, 2020)
Como todo e qualquer filme de ruína no cinema brasileiro, vai levar muito tempo para ser devidamente descoberto. Mas entre seus delírios e imperfeições é a viagem mais alucinante que vejo em tempos. Realmente, era um filme que senti muita vontade de escrever sobre mas o tempo talhou essa possibilidade. Sei que é uma mistura de coming of age com algo de horror maneirista e de cinema de garagem. Algo que existe dentro das fraturas que essas condições impõem (ou expõem). Realmente sublime, chocante, barato, inventivo, cartunesco, além de tantos outros adjetivos. Um périplo bastante desconcertante sobre narrativa, narração, narratologia, corpos, noite, sangue, posse e possessão. Um encontro muito frutífero de uma influência do melhor cinema de Abel Ferrara (O Vício, The Blackout) com a lógica de rejeição e decodificação tão comum ao cinema brasileiro. E o melhor é que tá tudo ali, em tela, pra gente vibrar e se chocar junto.

As Panteras (Èrika Sánchez, 2020) / Alienígena (Jegwang Yeon, 2019) / Cor de Pele (Larissa Barbosa) / Além de tudo, ela (Pedro Vigeta Lopes, Pâmela Regina Kath, Mickaelle Lima Souza, Lívia Zanuni)
Devem ser de longe, junto com o filme de abertura, os piores filmes que vi no festival. Por diversas razões (enfim, são quatro filmes, se falo deles juntos é justamente para não me deter tempo demais em nenhum), mas que poderiam ser simplificados todos a partir de uma única lógica: a vontade estetizante de dar conta do corpo no quadro. Algo que As Panteras e Alienígena, esses sim, filmes que rodaram em grifes muito fortes do cinema autoral, reiteram fortemente. Lembro de ter escrito um texto na Calvero, bastante tempo atrás já, sobre como filmes acreditam muito na força do corpo no quadro apenas estetizando a dor e o sofrimento, a pauta em questão. Na época, era sobre Girl (Lucas Dhont, 2018), mas talvez ainda valesse para estes filmes todos. Deixo o link aqui.

Eu Interior (Mohammad Hormozi, 2019) / Telas de Shanzhai (Paul Heintz, 2020) / ALGO-RHYTHM (Manu Luksch, 2019)
Três filmes bastante interessantes e que renegam muitas das lógicas impostas por outros curtas do festival. Tenho um fraco por ALGO-RHYTHM que a vontade de não se emocionar para além da conta – por ser alguém apaixonado por rap e por filme experimental – me fez permanecer contido. Mas talvez seja o que, dentre esses três, mais propõe algo realmente diferente – algum misto de performance, informação, política, reflexão ativa e – por que não? – as fronteiras que separam um cinema de um produto audiovisual.


Por Rubens Fabricio Anzolin

Filmes vistos no 9° Festival Olhar de Cinema

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