Atrações que vem do lixo (ou Eu não devo nada à ninguém): os curta-metragens de Lincoln Péricles

Texto orginalmente publicado na Edição 3 (out/2020) da Revista MNemocine, disponível para acesso aqui.

Rubens Fabricio Anzolin*

Dedico este ensaio à Valéria,
pela inestimável ajuda na feitura deste texto;


E ao Roberto, por apresentar-me a esses filmes
e pelo compartilhamento de suas ideias em textos e catálogos
acerca desta obra tão especial.

I

Não-reconciliado (ou A violência de um autor no país dos violados)[1]

Lincoln Péricles é certamente a maior descoberta do cinema brasileiro nos últimos 10 anos. Cunho este termo específico exatamente pela condição que ele trava: a de algo ainda não revelado. Posto isso, fica claro que não estamos falando de um cineasta como André Novais Oliveira, Affonso Uchôa ou Adirley Queirós (realizadores que despontaram na última década e alçaram uma frutífera carreira internacional – passando por festivais como Cannes, Locarno, Rotterdam, Nova York etc). Não, o cinema de Lincoln Péricles não é, ainda, um cinema internacional. Ele se restringe a poucas mostras dedicadas à sua obra (em especial, uma realizada em Recife, no Cine Under 2015, sob o título de Filmar é Trabalho: Filmes de Lincoln Péricles) e outras exibições esporádicas em festivais como a Mostra do Filme Livre, Semana dos Realizadores e o Forumdoc.bh, além de acolhidas de festivais experimentais como o Fronteira e outras mostras e eventos menores. Trata-se, portanto, de um cinema a ser descoberto e devidamente re(conhecido). 

Outra coisa importante que ajuda a conciliar este cenário: o cinema de Lincoln Péricles não é uma “obra de arte”, de mesuras e pompas, de estéticas e procedimentos muito bem decodificados. É um cinema de abismos, um cinema à beira do primitivismo, que se recolhe a uma condição fundamental de manufatura: fazer os filmes com as próprias mãos, com a própria gente, com aquilo que estiver à disposição. É um cinema aos trancos e barrancos, difícil de digerir, de compreender em primeira mão. 

Por isso mesmo, trata-se de um cinema ainda a ser investigado, já que é cada vez mais natural que as seleções e curadorias de festivais brasileiros – especialmente após o golpe institucional de 2016 – passem a buscar filmes de representações e pautas políticas muito mais diretas e palatáveis. Os vencedores dos últimos festivais de Brasília e Gramado denotam isso com grande facilidade: A Febre (Maya Da-Rin, 2019) e Pacarrete (Allan Deberton, 2019). São filmes de estéticas e procedimentos visuais domados, filmes que parecem arriscar, apontar para outros caminhos, que acusam certa coragem ou inventividade em um ou outro plano, mas escolhem parar por aí. 

Estes são alguns exemplos, é claro, e não seria justo reduzir toda uma produção brasileira a esta condição, mas uma coisa é evidente: o cenário do cinema brasileiro recente, em geral, aponta a estes caminhos conciliatórios, pouco ousados. Quase sempre atravessados por uma dialética das pautas do momento, dos filmes de minoria, uma tendência ao naturalismo periférico (muito bem representado pelas obras da produtora mineira Filmes de Plástico e, desde então, repetido à torto e direito). O que aparenta, afinal, é que o momento perpassa por essa morbidez, por uma incapacidade de inventar – e as condições políticas do país, do desmonte cultural e das leis de incentivo, parecem apontar cada vez mais para uma acolhida à estas obras mais diretas, mais digestivas. Filmes de bom senso, de políticas seguras e imagens límpidas, filmes que, acima de tudo, não estão a procura de um confronto com o espectador (seja pela natureza das imagens ou pela sua crueza técnica). 

O fato é que o Brasil tem feito uma boa dúzia de filmes sem coragem, fáceis de engolir pelo espectador médio interessado por cinema – obras muito bem conduzidas, realizadas com orçamentos razoáveis e com equipes técnicas bastante competentes, treinadas para encontrar sempre os planos mais simétricos e harmoniosos. O recente burburinho com as obras de cineastas como Petra Costa, Gabriel Mascaro, Fellipe Barbosa e Anna Muylaert, afinal de contas, não é por acaso, estes são todos vírus de um mesmo sintoma, frutos de uma classe alta em autodestruição, que nunca necessitou ver o cinema como forma de trabalho ou ganha pão. 

Por esses, e tantos outros motivos, é possível compreender por que os filmes de Lincoln Péricles – cineasta periférico, do distrito do Capão Redondo, sem formação universitária, com obras de caráter quase amador e extremamente radical – não andam na boca do povo, dos festivais, das curadorias. Mesmo que a própria Cahiers du Cinéma, a cultuada revista de cinema francesa, tenha dedicado a ele um texto de quatro parágrafos na sua edição número 758, de setembro de 2019, que vinha estampada com uma imagem de Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) na capa, o filme sucesso da última edição do Festival de Cannes[2]. 

Nessa capa, aglomeradas num conjunto de filmes de rodagem internacional e orçamentos voluptuosos que estampam um suposto establishment reconhecido como “O Cinema do Brasil”, retratados pela Cahiers du Cinéma, as obras de Lincoln Péricles – na Cahiers, fala-se em Filme de Aborto (2016) – são um corpo estranho. Um inimigo, um invasor.

Conquanto, seus filmes possam ser vistos como um objeto fílmico não usual perante o mano-a-mano com as outras obras recentes do cinema brasileiro, é especialmente porque suas obras realizam um recuo monumental na tradição cinematográfica: as imagens praticadas por Lincoln parecem feitas por alguém que ainda não descobriu o cinema ou mesmo a câmera de vídeo. Trata-se de um cinema de colagens, de rearranjos e decomposições, um trabalho que, na mesma medida que se torna cada vez mais depurado, pratica ao mesmo tempo uma violência descomunal com as imagens. 

Nesse sentido, as imagens de Lincoln Péricles poderiam ser balizadas por duas tônicas fundamentais, duas bases de estudo que, durante toda a trajetória razoavelmente vasta de curtas, médias e longas-metragens, se apresentam e se entrelaçam nesse projeto ambíguo e áspero de mise-en-scène: o primitivismo e o confronto. 

II 

Nem primata nem primário: simplesmente radical.[3]

O conceito mais famoso relativo aos primeiros anos da história do cinema foi cunhado pelo teórico americano Tom Gunning, que batizara o conjunto mais antigo de filmagens, enquadramentos e temáticas da história da arte cinematográfica sob o conceito de “cinema de atrações”. Essa ideia levava em conta que os procedimentos cinematográficos iniciais compunham-se sobretudo em cima de uma curiosidade acerca do mundo: o homem, encantado com o aparato câmera – até então desconhecido no seu relativo poder de filmar, cristalizar a alma, o gesto e as ações [4] – escolhera apontá-la para acontecimentos tanto chamativos como ordinários, verdadeiros recortes da vida humana. 

O famoso filme dos irmãos Auguste e Louis Lumière, L’arrivée d’un train à La Ciotat (1896 – é o que consta no IMDB), é um dos exemplos mais famosos e lembrados. De certa forma, a vida humana do que, posteriormente, iríamos convencionar chamar de artistas e cineastas, era o terreno central para seus testes e análises daquele pequeno objeto forjado à lentes e luz do sol. O resultado impressionante que as filmagens revelavam alteravam a forma do indivíduo de olhar o mundo, à medida que o mesmo ia apontando seu objeto para tudo aquilo que lhe  atraía, que sugava atenção na vida humana – fosse trabalhadores saindo de uma fábrica, um homem no jardim ou mesmo a capacidade de, pela primeira vez, poder capturar um rosto movendo-se ou um sorriso sendo esboçado. Afinal de contas, isso que convencionamos como “primeiro cinema” era nada mais que um estudo baseado nas possibilidades do aparato técnico, uma descoberta ainda engatinhante a respeito da forma com que podemos forjar imagens a partir daquilo nos intriga, seja pelo interesse ou pela repulsa.

Pode soar estranho querer tratar de um cineasta surgido recentemente como um realizador de atrações, como se fosse possível crer que, em plena década de 2010, alguém ainda não tivesse o mínimo contato que fosse com a arte cinematográfica. Pois bem, acontece que o cinema de Lincoln Péricles surge não necessariamente para provar o contrário, e sim para estabelecer a dúvida e o confronto, mas é evidente que na feitura e na realização de seus filmes o que se apresenta é um caráter que vai além do que convencionamos chamar de “experimental”, suas obras são exemplares de um modo de filmagem que diz muito mais respeito a um radicalismo formal (no sentido literal de raíz mesmo, da parte mais crua que se forja a matéria) do que de uma espécie possível de maneirismo [5]. 

Os filmes de Lincoln Péricles, de forma alguma, são maneiristas, não encaram a arte do filme como algo que já encontrou sua perfeição ou o seu formalismo e agora precisa ser radicalizada. Não. Seus filmes são experimentos ainda muito crus de um cineasta que tem nas mãos limitações básicas – nenhum orçamento, não-atores de seu próprio bairro, câmeras ou materiais de filmagem de baixíssima qualidade. Não existe hipótese de dizer que Lincoln fundaria, neste caso, um tipo novo de cinema, mas fica claro que o que se pratica é um cinema de descobertas: seus filmes são resultados claríssimos de tentativas de retratar a vida humana em uma região absurdamente violenta e periférica e seus consequentemente desdobramentos na vida cotidiana daquela população (a violência policial de Enquadro [2016], as questões de moradia e insalubridade de Aluguel: O Filme [2015], o desemprego e a gentrificação periférica de Ruim é ter que trabalhar [2014], a visão subversiva e crítica da classe alta opressora de Filme dos Outros [2013]). De um modo ou de outro, estamos redescobrindo um desdobramento do cinema de atrações de 100 anos atrás – estamos de frente para um cineasta que filma da maneira que for possível, do jeito que acontecer, aquilo que lhe atrai e repele, a vida humana no seu entorno.

Entretanto, seria no mínimo pejorativo classificar esse realizador como amador por efetuar tal procedimento. Na verdade, confrontamo-nos com o completo contrário: a dureza e aspereza visual que o cinema de descobertas pode oferecer aos conceitos mais elitistas de realismo. Em Lincoln Péricles, não estamos diante de um realismo filtrado (como o dos filmes brasileiros recentes, antes citados), de um realismo com técnicas rebuscadas, filtros de luz e direção de arte, estamos diante de um realismo nu, de uma verdade crua da vida humana intermediada por procedimentos que se revelam primitivos na mesma medida que reinventam toda uma ótica para o fazer fílmico. 

Tomemos como exemplo Enquadro (2016), filme forjado por narrações de sujeitos periféricos acerca da violência policial e da possibilidade de ser colocado na parede. Toda a obra é construída em cima de um recorte de quatro ou cinco personagens conversando abertamente com o diretor sobre suas vivências, com uma intervenção direta do realizador. Esses sons muito crus da vida do gueto urbano contrapõem-se com filmagens em preto e branco de lugares solitários da periferia paulistana – uma escada larga sem a presença de uma viva alma, prédios muito distantes cercados por grades e terrenos abandonados, uma pracinha escura onde nada pode-se ver, além do som ambiente das pegadas do realizador sob esses solos. 

Quando menos se percebe, a câmera deflagra um zoom eminente em direção à alguma grade, cerca ou janela, algo que denote de forma clara esses espaços que estão sempre cerceados, sempre sublinhando um sentido ou um significado de prisão – de que a polícia pode estar próxima. Evidente que é um procedimento ousado, difícil de captar em primeira ou segunda mão, mas inegável que existe nisso uma lógica de pensamento e objetividade que representa uma ruptura com a ideia do corte ou da simetria: esses planos não apresentam nenhuma concessão ou conciliação do que querem mostrar, arranjam uma forma prática de fazê-lo através do recurso que o aparato lhes oferece, o rolar rápido ou lento de uma lente até a construção de um significado, até aquilo que ressoa ou simboliza como um temor em sua vivência diária.  

O “atracionismo” apontado em Enquadro não para por aí, ele atravessa toda a obra. Logo ao início do filme – esse que deve ser um dos mais duros que o cinema brasileiro forjou nos últimos anos, ao lado de Na Missão, Com Kadu (Pedro Maia de Brito, Aiano Bemfica e Kadu Freitas, 2016) – uma cartela em vermelho nos alerta: “nenhum filme trará os que morreram de volta”. Assim, a mensagem do realizador acerca daquilo que a obra se trata fica cristalino desde o início, mas mais ainda, ela é lançada a partir de uma operação nada convencional, um ruidoso lettering em vermelho, contrapondo-se de maneira ríspida com um plano de um grupo fumando maconha ao som de Raul Seixas. Desse tal procedimento, emancipa-se a criação subliminar do significado: o plano em preto e branco muito cru da juventude periférica à noite, a letra serena acompanhada da viola de Seixas que afirma “Toda vez que eu sinto o paraíso /Ou me queimo torto no inferno /Eu penso em você, meu pobre amigo /Que só usa sempre o mesmo terno” e a frase dolorosa em grandes letras vermelhas jogam-nos para uma reflexão imediata – não apenas que aquelas pessoas podem, hora ou outra (dentro do plano, talvez) deixarem de existir, mas que mesmo que o façam, nenhuma imagem é capaz de salvá-las. Ou seja, seus destinos estão constantemente balizados por esses mesmos riscos e situações. 

Há ainda um outro plano muito importante neste mesmo filme para estender a relação entre o cinema de Lincoln Péricles com o “atracionismo”, a imagem que abre a obra. Dois navios com um som estrondoso arrastados no mar aberto por uma corrente, o preto-e-branco chapado já demarcando a presença fúnebre e tomando conta da tela. É inevitável recordar de Limite (Mário Peixoto, 1931), e também de traçar um paralelo com a hipótese de que, de um modo ou outro, Limite também era um filme de atrações, de descobertas do aparato e de intensa experimentação formal – não à toa, esse é o maior motivo pelo qual o filme é recordado até hoje como um dos mais significativos da filmografia brasileira. Tanto Limite como Enquadro guardam em si essa ideia primitiva do cinema como um interlocutor de significados impressos dentro da matéria da imagem, forjados a partir de procedimentos e técnicas muito inovadoras, não em um sentido de algo nunca visto, mas na dianteira da reação que reproduzem, dos paralelos que um andar sorrateiro por ruas vazias de um bairro pobre paulistano ao olhar misterioso de uma moça em um navio podem causar enquanto experiência e sentimento.

III

Toda propriedade é um roubo (ou Por um cinema não-hierárquico)

Esse espelhamento do plano iniciático de Enquadro com o filme de Mário Peixoto poderia parecer uma mera coincidência, não fosse hábito de um recurso muito usual nos filmes de Lincoln Péricles. Citava antes aqui que seu cinema realizava um recuo monumental da tradição cinematográfica por trabalhar nessa chave de relações e construções com um modelo novo (leia-se, atualizado) de primeiro cinema – de descoberta da imagem como reprodutibilidade técnica do meio em que se insere – e também por se alçar em duas balizas fundamentais, estabelecidas pela crueza do primitivismo e pela deflagração de um confronto. Um exemplo claro de confronto são as letras vermelhas do aviso em Enquadro, pois travam um confronto aberto com o espectador acerca das vidas humanas em tela, não é só um alerta como também uma espécie de urro, uma agressão verbal em formato de imagem – o realizador afirmando: pense nisto que falo, é grave e real; faço filmes sobre essa gente.

No entanto, existe uma outra espécie muito clara de confronto que norteia esta obra, e esse confronto se estabelece e divide em duas variáveis evidentes: há o desejo de confrontar o espectador (e, se esse desejo não é necessariamente intencional, é, no mínimo, provocador e de caráter urgente, não conciliatório) como também há um confronto na própria tessitura das imagens e dos elementos culturais presentes em tela. 

Um estudo de caso que sustenta essa tese pode muito bem ser observado em Filme dos Outros, quando, logo ao começo da projeção, o cineasta nos alerta que as imagens que veremos a seguir são oriundas de aparelhos celulares furtados (incluso a data e o local de cada furto), além de um aviso tendencioso que incita os respectivos donos das imagens/aparelhos a entrarem em contato com o realizador caso identifiquem-se na tela. É um procedimento ousado esse de Lincoln, pois desde já assume um certo caráter clandestino – fazer filmes com filmagens de outros, realizadas por outros, pela “classe média” (como indica a sinopse do filme) [6] furtada pela classe mais baixa. Mais que isso, é a ideia de subversão e exposição que delineia todas essas imagens – aparentemente deslocadas entre sim, mas que, a partir de suas consequentes junções por meio da montagem, indicam um modo de vida e de costumes daquilo que se denomina o outro

Esse outro que habita espaços distintos do realizador – o estádio de futebol de um jogo importante, a cama elástica de uma escola privada, uma brincadeira no quintal seguro de casa etc. É quase como uma realização de um estudo de caso, uma visita antropológica que assegura a classe mais alta da sociedade como um ser estranho, uma cobaia de uma experiência social sinistra, um passeio antropológico mediado por seres-humanos que mais parecem alienígenas naquelas lentes. Não é nada parecido com filmes como Pacific (Marcelo Pedroso, 2009) ou Doméstica (Gabriel Mascaro, 2012), por exemplo, em que o caráter “subversivo” ou inventivo partiria de uma espécie de observação de classes mediado pela consciência do que se filma, expondo aqueles objetos humanos ao ridículo, prestando concessões ao discurso sobre as divisões de poder. 

Em Filme dos Outros, abolimos as regras da partilha, pois é um cinema de embates, um cinema forjado nas sombras, oriundo do furto, da invasão da propriedade (se aquelas imagens são propriedades privadas, então estão consequentemente sujeitas a depredação). O que Lincoln faz no sentido do confronto é alertar a quem assiste que existe algo de errado no que se está vendo, vidas que são espelhos e reflexos de conflitos muito além do que essas simples filmagens podem oferecer.

Estudos de casos como esse aportam e permeiam também Aluguel: O Filme e Ruim é ter que trabalhar, ainda que essas sejam obras que digam mais respeito à capacidade de tessitura que o cineasta guarda em relação aquilo que filma. Ambos os filmes são a prova de um talento inigualável de forjar a textura das imagens a uma realidade compatível, tornando aspereza em riqueza, forjando um diamante bruto que vem direto da ourivesaria. 

O precário torna-se símbolo das vidas que Lincoln Péricles filma, e as alternativas e escolhas de captação representam isso de forma muito particular. Quando Adriano (personagem de Ruim é ter que trabalhar) fala de seu emprego, fotografias em preto-e-branco aparecem na tela. Poderia soar um procedimento mais comum, não fossem essas fotos feitas por Adriano com uma capacidade de captação muito precária, fotos com desfoque e um enquadramento nada harmônico, colocadas posteriormente em preto-e-branco para conciliar a dureza do relato a uma brutalidade da imagem, coisas muito chapadas, objetivas e diretas, mas que apontam um caminho de uma co-autoria evidente, quando são as fotos do própria personagem feitas por ele da maneira mais livre possível que dão conta de representar os locais que atravessa. 

Em Aluguel: o filme, outro momento importante em que uma ideia de confronto das imagens torna-se presente é logo na abertura do filme, em frames do programa de TV Chaves aparecem na tela, recheadas de cenas teoricamente engraçadas e atrapalhadas. Apesar de ser um elemento cultural muito conhecido e, a primeira impressão, soar como algo risível, Lincoln Péricles consegue ver em Chaves uma questão de classe tão fundamental como dos seus iguais de bairro e rua. Questionar a presença de imagens de um programa como Chaves em um filme dito “sério”, já é por si só algo estranhamente conflitante, mas que o realizador consiga fazer disso uma espécie de epílogo da gentrificação social que atinge a periferia, é de fato algo inovador. Tolher do mundo aquilo que ele entrega como convenção e entretenimento e fazer disso discurso, eis o verdadeiro golpe. Confrontar o que está em tela e depois perceber que, da forma como está posto, suas balizas mudam de sentido completamente. 

Reciclar as imagens do mundo e torná-las atrações de revolta, de urgência e revolução. Juntar dos lixos audiovisuais o que lá já estava perdido, e ver nessas mesmas imagens semelhanças tão distintas e distantes quanto as realidades de Seu Madruga e Dona Florinda. Sujeitos distintos que representam classes com um abismo entre si, mesmo morando a poucas portas de distância.

Se existe hoje, no Brasil, um cineasta capaz de recolher atrações do vasto mundo das imagens e reformulá-las em um discurso ainda não descoberto (de Lumière a Chaves, de Mário Peixoto a Raul Seixas), esse cineasta é Lincoln Péricles. Ele está aí, apesar de tudo. E o seu conjunto de misturas, imagens e representações avisam a nós, meros espectadores, apenas uma coisa: ele não deve nada a ninguém.


NOTAS

[1] – O título é uma referência ao filme Não-Reconciliados (ou Só A Violência Ajuda Onde Reina a Violência) (Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, 1965). A referência é uma forma clara de delimitar a posição de Lincoln Péricles na sua forma de fazer filmes: assim como o título da obra do casal Straub-Huillet (e o restante de sua filmografia) o cinema é visto como um objeto muito bem pensado e delineado, que não presta mediações simples ou fáceis ao espectador, além de abordar com uma rispidez e uma clareza alentadoras temas graves e importantes, especialmente na fase inicial de suas obras.

[2] Bacurau recebeu, na edição do Festival de Cannes de 2019, o Prêmio do Júri (divido com o filme Les Misèrables, do cineasta Ladj Ly). Além disso, o filme causou uma repercussão imensa em todo o Brasil, lotando salas de cinema e virando uma espécie de medidor cultural. Apesar de ser um cinema de estratos sociais e ideias políticas muito claras, há uma distância imensa entre os filmes de Lincoln Péricles e o cinema de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.

[3] – O termo “primata” diz respeito a uma associação feita pelo pesquisador Marcelo R. S. Ribeiro em relação ao cinema de Léo Pyrata. O cineasta em questão seria talvez aquilo que encontraríamos de mais parecido com Lincoln Pérciles no Brasil, alguém que constrói imagens a partir de um abstracionismo e de uma violação da tela, ainda que, de algum modo, estabeleça relações com o primeiro cinema (nessa ideia de estar descobrindo aquilo que se filme ou se deseja filmar). Além disso, a palavra é utilizada para pensar o cinema de Pyrata como se fosse um bípede (o macaco) com a câmera na mão, de uma forma ou outra, um cinema animal. Lincoln anda um pouco mais longe dessa associação e, por isso mesmo, não é nem “primata” (mesmo que seja um cineasta comum a Léo Pyrata) nem necessariamente “primário”, pois não é um cineasta do primeiro cinema (ainda que seus filmes recorram a diversos códigos desta época).

[4] – A ideia de que a câmera e a fotografia representam uma forma de capturar a alma humana (uma espécie de morte primitiva, primeira morte) é discutida na história da arte de maneira vasta desde o início do século XX. Dois importantíssimos teóricos, André Bazin e Roland Barthes, escreveram um ensaio e um livro que esclarecem essas questões de forma muito inovadora. Bazin defende a ideia do cinema como bálsamo – uma comparação com a mumificação egípcia, preservar o corpo e a forma -, uma espécie de captura da eternidade que as imagens produzem ao serem clicadas. Virar fantasmas de um próprio tempo, presos a uma moldura. Estas ideias estão tanto em seu famoso ensaio A ontologia da imagem fotográfica (reunidos no livro O Que É Cinema?, da Ubu Editora) quanto em outro texto seminal chamado Morrer todas as tardes (presente nos textos reunidos por Ismail Xavier na coletânea A Experiência do Cinema). Barthes, por sua vez, dedicou seus estudos teóricos às investigações da linguagem – seja da escrita à fotografia e ao cinema – esses últimos reunidos em capítulos muito esclarecedores do livro A câmara clara, em que aponta o objeto a ser fotografado como um alvo a ser capturado e eternizado naquele momento, virando um fantasma de sua própria existência dentro da imagem retratada.

[5] – O conceito de maneirismo (ligado ao cinema) foi cunhado pelo crítico francês Alain Bergala, em um texto publicado na Cahiers du Cinèma n° 360, em abril de 1985. Intitulado De uma certa maneira, Bergala defendia que, aquela altura, o cinema estaria atravessando uma espécie de mudança que a pintura já havia presenciado, quando a arte teria encontrado a sua forma máxima de representação – a sua “perfeição” natural – e, a partir deste ponto, os grandes artistas (cineastas,  no caso) teriam como tarefa não mais tentar replicar ou reproduzir a perfeição da forma e, sim, desmontá-la, reorganiza-la ou reimagina-la: encontrar uma outra maneira de realizar as representações.

[6] –  “A classe média si filma e nois assiste”. Sinopse indicada no link da plataforma vimeo da obra O Filme dos Outros


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BARTHES, R. A câmara clara. Ed. Nova Fronteira. São Paulo. 2015

BAZIN, A.  O Que é Cinema?. Ed. Ubu. São Paulo. 2018

GUNNING, T. D.W. Griffith and the Origins of American Narrative Film. Ed. University of Illinois. Illinois. 1991.

FILMOGRAFIA

A Febre (Maya Da-Rin, 2019)
Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019)
Pacarrete (Allan Deberton, 2019)
Enquadro (Lincoln Péricles, 2016)
Aluguel: O Filme (Lincoln Péricles, 2014)
Ruim é ter que trabalhar (Lincoln Péricles, 2014)
Filme dos Outros (Lincoln Péricles, 2013)
Doméstica (Gabriel Mascaro, 2012)
Pacific (Marcelo Pedroso, 2009)
Limite (Mário Peixoto, 1931)
A Chegada de Um Trem A Estação (Louis Lumière e Auguste Lumière, 1896)

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s