Antes de tudo, uma confissão: sofro de um mal parasitário quase incontornável: eu ando sempre atrasado. Em tudo. Compromisso, aula, debate, sessão de cinema. O que quer que seja. Além disso, tenho também uma certeza imperiosa de que, tentasse eu contornar meus atrasos, prevendo-os de antemão, certamente atrasaria-me para a previsão – e chegaria, enfim, atrasado.
Talvez esta condição, penso, potencialize o meu amor pelo cinema: pois o cinema – no caso, os filmes – jamais se atrasam. Duram o tempo que tem de durar e nunca mais retornam. Os filmes não dão chance ao atraso. Regem o tempo.
Certamente este é um dos fatores do último trabalho de Kelly Reichardt que mais me abrilhanta os olhos, o regime do tempo. Na verdade, o regime da vida. A crença absoluta de que tudo é cíclico e que, para que algo possa existir, antes de tudo é necessário ruminar. Cinema de paciência. Não de atraso. De espera. E isto se estende à todas as coisas que a cineasta filma, e que, se olharmos com atenção, não é nada mais que um movimento elementar: ordenhar, misturar, cozinhar, assar, recolher, alimentar e digerir. Da natureza para a natureza, ad infinitum.
Não digo isso afirmando que Reichardt filme como Akerman ou Michael Snow, que seja estruturalista, queira filmar o tempo da vida. Pelo contrário, em First Cow a cineasta filma o seu processo, derrete um itinerário de cinema de fluxo – baseado nos cineastas supracitados – para erguer, pacienciosamente, um tempo anterior às coisas. Um tempo de ruminação, lacunar. Um intervalo.
A epígrafe de William Blake que abre o filme, indiretamente, confirma isto: se a teia é para a aranha e o homem para a amizade, o cinema de Reichardt é para estes pequenos intervalos. Uma matemática da proporção, que o primeiro e o último plano do filme apenas confirmam: assim como aquilo que Cookie colhe para cozinhar, os dois amigos terminam o filme no mesmo lugar de onde surgiram, enterrados no centro da natureza. Pois no cinema de Reichardt a morte, e cá preferiria chamar de “o findar das coisas”, não é somente um encerramento, mas sobretudo uma transformação. Cognição, inclusive, que a cineasta conjuga muito bem em seu processo cirúrgico de montagem, entre o miolo central de filme que se estabelece no processo de cozimento, venda e lucro dos pequenos bolinhos fritos dos personagens principais. Já que o que está em jogo nos blocos em que Cookie e Lu estabelecem-se como cozinheiros da pequena aldeia não é simplesmente um vai-e-vem dinâmico para guinar a narrativa para frente, senão um atestado de fé absoluta naquilo que a vida possui de cíclico e rotativo, o caráter mutante das coisas, o universo como elemento transformador.
Daí a atenção que a Reichardt deposita em todos os planos deste processo, desde o retirar leite da vaca no escuro, até o tempo de acender um cigarro em uma cabana pequena enquanto a mistura do doce vai para o forno. Até porque, assim como o movimento da vida e da natureza, a amizade só pode se construir e manifestar diante destes intervalos, e o amor fraterno de Cookie por Lu só pode estabelecer-se a partir destas pequenas intersecções no tempo das coisas.
Entretanto, há de se reconhecer que a vida não se vive apenas a dois, e que a natureza é tão benevolente como tirana. Pois, se há a natureza das coisas, que Reichardt reconhece com a excelência de cineasta já calejada, há também a natureza dos homens, eternamente atrelada ao delito. Pois Cookie e Lu, para garantir alimento, arrancam o leite da figura do patrão (Toby Jones). E, no fim das contas, como bem consta da natureza dos tiranos, o patrão possivelmente arrancará a vida de Cookie e Lu.
O que há de se notar é que, para Reichardt, o delito de roubar cometido por Cookie e Lu não é exatamente culposo ou errôneo, da mesma forma que a morte imaginária (e talvez brutal) dos dois personagens é tão somente uma consequência do movimento das coisas. Como tudo aquilo que acontece em First Cow, tal qual a elipse entre os séculos que divide os primeiros cinco minutos de filme das duas horas restantes, o processo do tempo e dos acontecimentos, aqui, segue a ordem da transformação, da ruminação, da espera. Eis um filme do movimento natural, que obedece unicamente a incontornabilidade do universo.
Universo esse que muitas vezes é tirano, pois abriga em si a selvageria de um mundo que há muito construiu cercas ao redor das coisas e se prestou a defendê-las com sangue, custe o que custar. Mas ainda assim, um universo que pode também ser benevolente, e que, ao acaso, pode apresentar-lhe um amigo bem quando menos se espera, imiscuido entre as folhas da floresta – quase como se este ser-humano fosse também parte dela. Resultado final de um cinema regido na equação da natureza, de seus seres (vacas e corujas) e condições. Não um cinema do bem e do mal, mas sim do equilíbrio. Aquele mesmo que transforma o leite de um animal solitária em uma especiaria culinária, e que faz de dois amigos sonolentos um saco de cadáveres.


Por Rubens Fabricio Anzolin