A 24a Mostra de Cinema de Tiradentes começou ontem com o filme de Paula Gaitán, Ostinato (2020), documentário experimental que tem como personagem principal o cantor e compositor Arrigo Barnabé. Eu, como bom teimoso, resolvi pular o filme de abertura (que ainda me interessa ver, é verdade) e ir diretamente àquilo que sempre prezei como o mais valioso em qualquer programação de festival de cinema: os curtas. Por algum instinto curatorial, resolvi tentar respeitar ao máximo também o desenho de programação feito pela mostra, na tentativa de entender aquilo que pensaram as pessoas que alocaram tais filmes juntamente. Isto é, que desenho ou que narrativas e intersecções tais obras criam quando vistas uma após a outra. Por isso mesmo, escolhi justamente a Panorama 1 para iniciar a programação, acrescido do fato deste mesmo programa ser aberto com um filme de Melissa Dullius e Gustavo Jahn, da produtora Distruktor, cujas obras sempre provocam alguma espécie de ruptura sistemático no ato de olhar um filme.
Eis então que Levantado do Chão começa, já oferecendo uma pista bastante valiosa sobre a sistemática deste programa 1 da Panorama. O filme, na verdade, talvez leve ao limite uma máxima que trabalha no limiar do silêncio e da escuta. Gravado em um 16mm para lá de chapado, em um formalismo centralizado no quadro à lá Straub-Huillet, toda a duração do curta dos Distruktor é regida por um gesto de alternância: um filme que, a primeira vista, poderia chamar-se mudo, na verdade é talvez a obra que mais tente se comunicar dentre todas as outras que aqui estão juntamente programadas. A sinopse do filme talvez oferece outra pista, tentando trafegar na lógica do sonho e da imaginação. Os 11 minutos da projeção são dedicados a cenas peculiares observadas pelo protagonista – uma menina andando em cima de uma bola, algumas esculturas históricas, dois homens conversando enquanto bebem chimarrão. Cada vez que presencia alguma dessas ocasiões, o personagem de Gustavo vai ao chão. E, a partir daí, cabem aos outros figurantes tentar ajudar o ator a levantar-se.
É então que surge a dúvida: afinal, o que vê aquele homem nestas ocasiões banais a ponto de não conseguir permanecer de pé, o que faz com que perca o equilíbrio tão de repente? Bem, se existe uma resposta correta para estas perguntas, confesso não saber. Na verdade, creio que não importa. O que parece, isto sim, é que aquele personagem não quer permanecer andando, que o chão, as ruínas do mundo, são o seu estado natural.
Tenho uma séria impressão, aliás, que todo o Programa 1 da Panorama orbite justamente nesta frequência: são filmes sobre pertencer ao chão, à pedra, estar arraigado às ruínas e às origens, e tentar minimamente imaginar – levantar do chão – é uma forma de fuga ou de escape. No filme dos Distruktor, afinal, Gustavo não consegue. Eis um retrato (que até soa bastante engraçado) de um cinema mudo contemporâneo, mas que comunica muito bem esta impossibilidade de se erguer do próprio buraco, tapar a sombra de sua própria cova.
Este também, receio, seja o ensejo dos dois filmes seguintes: a iminência de tentar imaginar uma fuga (extremamente galgada nas imagens) de suas próprias covas. Minha Bateria Está Fraca e Está Ficando Tarde (Rubiane Maia / Tom Nobrega, SP, 2020) inclusive, ataca diretamente esta lógica. Eis aqui um longo devaneio sobre o estado de pertencimento – a um corpo específico, um país e um universo – que se apoia incessantemente nos ombros cansados dos filmes de pandemia. Minha Bateria Está Fraca…, talvez, simbolize todas as diretrizes do primeiro programa da Panorama em apenas 30 minutos, quase como se liquidificasse um ano tortuoso da vida de um sujeito em imagens experimentais incessantes. É inegável, porém, que temos aqui uma tangente muito clara sobre pertencer ou não a algum lugar, a alguma terra e, mais especificamente, a um corpo específico. Há também uma rasante, na relação estabelecida pela realizadora, que talvez seja a mais interessante de toda a obra: a ideia de que, neste mundo caótico, o vírus também é um corpo que busca pertencer a algum lugar, tanto quanto nós, seres-humanos. Fosse essa, quem sabe, a linha central de Minha Bateria…, o filme pudesse encontrar uma costura menos esparsa e mais concisa de todos estes devaneios. O que acontece, entretanto, é uma reverberação caótica, um expurgo absoluto, de todas as sensações que habitam o não pertencimento, mas que se perdem e definham em larguíssimo 30 minutos de projeção.
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Esse quebranto, que divide Levantado do Chão de Minha Bateria… é bastante recompensado pelos dois filmes seguintes: Ilha do Sol (Lucas Parente, Rodrigo Lima e Walter Reis, RJ, 2020) e Animais na pista (Otto Cabral, PB, 2021). O primeiro é possivelmente o filme mais interessante do programa, pois talvez seja o único capaz de quebrar as máximas que cerceia o desenho destes cinco filmes para procurar alguma saída, encontrar algum norte. Nos momentos iniciais, observamos um homem a riscar com tinta uma cobra circular em uma pedra, e daí já surgem algumas indagações, quer dizer, eis uma relação muito bem estabelecida com a ideia de uma ilha e daquilo que uma ilha e um mar podem significar para uma gama de corpos ao redor do Brasil, desde o medo de uma fuga até a possibilidade de um esconderijo seguro. No entanto, em poucos minutos a obra de Lucas Parente, Rodrigo Lima e Walter Reis dá um giro monumental. A música performática cessa, a câmera se afasta e entra uma narração em idioma indígena. A medida que o filme se desfaz e podemos entender o universo em que aquele pequeno homem se encerra, a relação entre não pertencimento e pertencimento ganha um abismo ainda maior e, através das palavras ditas pela voz do homem, acompanhadas por uma pequena legenda (elemento fílmico importantíssimo) as razões e motivações do não pertencimento tornam-se ainda mais palpáveis.
Tão curto e tão valioso, talvez, quanto Ilha do Sol é o exercício de Animais na Pista. Filme que, segundo consta, tem 9 minutos de duração, mas que de filme-filme mesmo, deve ter apenas uns 5. Não que precisasse mais para escancarar uma ideia de sumiço. Diferentemente das outras obras do programa, estamos diante de um delírio mais ficcional que qualquer outro – ficção roubada da ficção, no duro mesmo. É a adaptação do conto “Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência”, de Rubem Fonseca. Pouco sacamos sobre o que está rolando no filme, é verdade, mas podemos observar uma moça entregar uma faca a um homem. Depois, através do flanar de um plano sequência, acompanhado de uma trilha suntuosa, observamos uma cena de acidente. Luzes policiais, vidros quebrados, carros e caminhões na pista. Um grupo de pessoas vai carneando um animal e disputando suas vísceras centímetro por centímetro. De repente, algo chama atenção em meio ao ambiente noturno, os sapatos verdes de um garoto. Afinal, quem é aquele garoto? Não é ele também um animal na pista? Este mote do filme – que, por opção, escolho não entregar muito mais do que já disse – é resolvido e simplificado com apenas dois ou três planos, mas que reiteram a ideia de um pertencimento imaginário que acompanha o programa: um garoto, uma criança que, na verdade, é também um animal, está na pista. Mas está mesmo? A ver para descobrir.
Por fim, o último dos cinco filmes é Vagalumes (Léo Bittencourt, RJ, 2019). Um passeio noturno por um reduto do Rio de Janeiro. Possivelmente, de todos os filmes, este é o que os personagens mais se reconhecem no lugar onde estão. Fico imaginando, inocentemente, que talvez nenhum daqueles homens e mulheres que especula, transa, beija e banha-se nas águas que cortam as folhagens tem qualquer dúvida sobre o porquê estão ali. Em um dado momento, um homem é filmado junto às raízes de uma árvore, e aí, surge uma sugestão: por lógica, aquele homem é também parte deste local, grudado neste chão, mas o quanto não poderia ser ele também um prisioneiro daquele mundo. Vagalumes não parece interessado nestas respostas, é verdade, mas acima de tudo procura dar a ver um jogo de enquadramento e pintura da luz em que os corpos formam também uma radiografia daquele ecossistema.
Não se tem a certeza se existir naquele espaço é um desejo próprio daqueles seres-vivos que rondam a noite entrecortados por pequenas luzes, mas que é um fato verídico que eles se reconhecem neste local… bom, isto é. E finalmente, talvez, encontremos uma maneira de sobreviver ao pertencimento – ou a obrigação de pertencer – a qualquer espaço. Já que Vagalumes nos sugere, ao fim, que, independente de sermos ou não parte daquelas raízes, isto é imutável, e melhor mesmo é procurar alguém para praticar um coito escondido debaixo da sombra de uma árvore. Pelo menos enquanto é tempo.
Filmes vistos na Cobertura da 24a Mostra de Cinema de Tiradentes
Por Rubens Fabricio Anzolin