Existe um conjunto de planos e enquadramentos que se sobressaem de todos os outros ao decorrer das quase 10h de Servant. Sempre que há qualquer interação entre personagens que não ocupam o mesmo espaço, visto que a minissérie se passa majoritariamente dentro de uma casa, alguém conecta um aparelho audiovisual a uma televisão ou mesmo a um tablet e a partir destas pequenas telas dentro de outras telas é que se dá a interação. Daí nasce um novo estilo de encenação que não diz mais respeito à câmera enquadrar os atores dentro uma moldura delimitada, seja ele um cenário ou uma posição específica do quadro; o que passa a ser o cerne do estilo de Servant é justamente um movimento oposto, já talhado pelo cinema de M. Night Shyamalan desde a guinada radical de A Visita (2015) em sua carreira, onde a câmera procura não mais o corpo ou o rosto para fazer parte do plano, mas sim uma pequena tela que abriga em si a face dos atores e a consequente possibilidade da encenação.
Demovido da possibilidade de o horror se apresentar a olho nu para a câmera, na primeira camada da imagem, o movimento que o realizador faz é o de procurar o mistério justamente no que existe no pós-tela, da mesma forma que o found footage de A Visita funcionava como um propulsor da narrativa pela capacidade de revelar, depois daquilo que se vê, o que verdadeiramente estava em cena. Ou seja, diante de um filme que é duplamente filmado – por quem está em cena e por quem assiste a própria encenação – todo o desdobramento imagético resulta em uma equação de duas camas: há o efeito da imagem na tela, em si, e há também o efeito que a segunda imagem causa em quem está encenando diante da tela. Em seus momentos mais instigantes, Servant também funciona assim. O conglomerado de temáticas que abrigam aquilo que costuma ser o coração temático do cinema de M. Night Shyamalan, assim como a questão da fé, do humano-monstro, da espetacularização da mídia, também fazem parte deste universo. Mas todo o resto não brilha tanto diante dos olhos quanto a inevitabilidade suspensória dos dispositivos móveis, já que o mais arrebatador mesmo é acompanhar Tony Revolori entregando pizza em uma mansão sinistra para raptar sua amada – tudo isso registrado por um celular sorrateiramente escondido no bolso de sua camisa. E é estritamente por isso que a encenação concebida em Servant, que se dá através dos aparelhos digitais, é capaz de desdobrar ainda mais uma camada naquilo que o audiovisual fabricado por M. Night concerne no sentido de suspensão do mistério.
Em Servant, não se acompanha mais o humano no quadro, mas principalmente acompanha-se o humano que reage ao pós-enquadramento. Na cena em questão, de Tony Revolori fazendo as vezes de entregador de pizza, mais ou menos no final da segunda temporada, a família Turner se reúne na sala em volta da TV, onde é possível observar aquilo que o celular de Tobe registra ao adentrar em um casarão misterioso. Todo o jogo de descortinamento, diálogos e até mesmo o momento derradeiro do envenenamento de Leanne (Nell Tiger Free), ocorre a partir dessa decupagem que investiga a reação que se dá entre o choque de um primeiro enquadramento (o dos personagens organizados ao redor da TV) com o do segundo enquadramento (que é assistido por esses personagens, mas que ocorre em uma camada posterior na imagem em si).
O cinema, claro, é uma questão de ajustes e escolhas, e o que se dá em Servant, não apenas nos episódios que M. Night comanda, mas sobretudo naqueles dirigidos por sua filha, Ishana Shyamalan, é uma espécie de desejo em encontrar o horror através daquilo que a própria imagem filmada, no pós-quadro, observa. Tais agenciamentos são capazes de conceber ainda outras ferramentas no sentido suspensório do medo: se um dia Shyamalan filmou uma obra como A Visita, em que o dispositivo found footage abria um novo campo para a estranheza — cabe lembrar das pequenas crianças rastejando como bichos por entre os túneis —, agora filma os passos dos humanos por entre imagens, e o medo fica presente tanto no cambalear torto de um celular (o dispositivo final do medo, o verdadeiro movimento de câmera que importa na sequência) quanto na energia sinistra dos personagens que, em tela, observam um outro sujeito, em primeira pessoa (P.O.V) dar passos em direção a escuridão.
Servant, aliás, também é capaz de adicionar outras ramificações àquilo que é considerado a espinha dorsal da obra de Shyamalan. Afinal, é notável que desde filmes como Corpo Fechado (2000) e A Vila (2004) existe um encantamento dos personagens por tudo aquilo que provém de uma ideia de mito, de narrativa oral, de herança da fábula. Em Corpo Fechado, esse fascínio se desdobrava a partir das narrativas de super-heróis, e a trama só passava a existir enquanto fosse uma questão de vida ou morte comprovar a existência dos mesmos em um mundo destinado estritamente ao terreno, ao anti-fabular; já em A Vila, da mesma forma que em Dama na Água (2006) e Fim dos Tempos (2008), o deslumbre pelo mito se dava através da narrativa constituída na tradução do tempo, uma oralidade quase primal, civilizatória, reproduzida durante anos e que era capaz de conduzir tribos, comunidades e cidades ao encontro do fantástico – sobretudo por uma questão essencial de sobrevivência. É, inclusive, tão somente nos momentos derradeiros que dividem o lastro de quem vive e quem morre que os personagens de Shyamalan dão o braço a torcer para aquilo que lhes foge a compreensão; a tática, antes de tudo, é a de negar a veracidade da oralidade, do mito ou da lenda para que, prestes a fenecer, se refugiem nesta ideia constituinte. Nessas cenários, os homens são capazes de atravessar todas as adversidades, até que a chaga final de suas trajetórias seja, enfim, aceitar uma irrealidade presente em seus respectivos mundos.
Contudo, o que Servant coloca em prática, a partir desse desvio de caráter costumeiro dos personagens de Shyamalan, é um fascínio pelo fabular que se dá não mais na crença do mito através da oralidade, mas sobretudo através do fascínio humano pela imagem digital. Em Servant, descobriremos depois, Leanne só visita a família Turner por possuir uma atração prévia pela matriarca da família, a repórter de variedades Dorothy Turner (Lauren Ambrose). Enquanto Dorothy trabalha, Leanne tranca-se no quarto para assisti-la religiosamente em uma pequena televisão de tubo. Nota-se, enfim, que o fascínio surge não por uma herança civilizatória da ideia do mito, senão a partir de uma construção midiática que é feita pelos satélites ao redor do globo terrestre. E assim como tudo em Servant, Leanne compra a fábula do bebê morto de Dorothy e decide ressuscitá-lo não pela crença humana que possui na mulher adulta ou na sua narrativa, mas sobretudo pela serventia implacável que têm para com a imagem de Dorothy, e também para com aquilo que a falsificação de sua face e de caráter pela imagem digital da televisão podem oferecer a um espectador desavisado.
Por que Servant, como boa parte daquilo que Shyamalan e seus predecessores produziram, não é necessariamente sobre o que está em tela, mas essencialmente sobre o que se desdobra depois dela, através dela, para além dela. Não é sobre a imagem que se vê, é sobre a imagem que falta, e que só pode ser descoberta quando os seres enxugam os olhos para olhar para o mundo com a devida pureza.
Por Rubens Fabricio Anzolin