Um rastro sobre a coreografia dos corpos

O Alvo (John Woo, 1993) não é um grande filme. Não ao pé da letra. Tudo que se passa nele tem um escopo menor, isto é, uma dimensão mais minimizada. Tudo é grande, claro, como se deve ser em um filme de ação, mas nem tão grande assim. A começar pela trama, que é quase um fiapo: basicamente Jean-Claude Van Damme e Yancy Butler contra o mundo. Depois, passando pela paisagem em que o filme acontece: majoritariamente lugares abandonados pela sociedade, fábricas, bairros, portos e cemitérios deixados ao relento. E finalmente chegando diante da dimensão dramática forjada pela dupla de porradeiros Woo e Van Damme, em uma obra cujo fator determinante é estender a ação e, especialmente, a sensação de vislumbre causada pela mesma até onde isso seja possível. Um cinema que se manifesta não pelo plano, por aquilo que mostra, mas sobretudo pela montagem, por aquilo que é capaz de estender da imagem diante dos olhos e fazer perdurar como sentimento.

Confesso que fiquei tocado pela provocação que o amigo João Pedro Faro fez ao escrever sobre John Woo, quando afirma que, se o cinema é a música da luz, então os filmes de Woo são a música do fogo. Concordo, mas estico. Se o cinema do Woo é a música do fogo, então é também a música da durabilidade, já que toda chama que se acende uma hora se apaga. Falo nesse conceito porque cada vez mais me interesso pelas maneiras cujo cinema se manifesta, e sobretudo pela forma que realizadores modulam seus filmes em virtude das manifestações. Nos filmes de John Woo, tudo se apresenta de forma latente, vertiginosa, ríspida. E, apesar de toda essa velocidade, de uma câmera que é muito seca, que filma exatamente aquilo que se quer filmar, sem dribles ou orquestrações prévias, consegue também se equilibrar em um pêndulo que compreende com maestria  suficiente o poder da imagem, sendo capaz de retornar à ela novamente, em slow, recortando novamente a decupagem, e recuperando enfim a sensação da ação e o rastro do gesto. 

Nesse sentido, é essencial reparar em como no cinema de Woo o gesto é um elemento fundador, isto é, o olhar, o sorriso, o bailar dos corpos. Principalmente quando se tem um ator como Jean-Claude Van Damme, capaz de reproduzir um arsenal de faces sentimentais em meio a um sem-fim de testosterona e músculos malhados. São esses trejeitos, esse pulular dos homens que vêm acima da explosão, do tiro e do impacto. Importa muito menos a bala que sai do revólver do que o corpo a chocar-se contra o concreto, refazendo um balé nos destroços, gerando uma energia catártica que só a imagem é capaz de capturar e a montagem capaz de fazer permanecer. 

E daí que digo que O Alvo não é um grande filme. Pois não é mesmo. Seja pelo sentido literal, da duração (pouco mais de 90 minutos), seja pelo escopo dramático ou pela aliteração dos espaços. É um filme calcado no gesto do mínimo, naquele olhar concentrado e enervado de Van Damme enquanto corre e escapa do fogo. Daí também a escolha de um ator como Lance Henriksen, magistral, para encenar o vilão. Alguém que apesar de todos os adereços é quase sempre filmado na altura dos olhos, para ressaltar a encenação aguda, catártica, num tom elevado, beirando o cínico. São elementos como esses que concebem em O Alvo um dos filmes mais especiais de Woo. Que tem sim, é verdade, essa assinatura de fase americana, de Filme B, e de um escopo social (velhos brancos assassinam os sem-teto por puro tédio) quase pedestre, mas que pouco importa, já que o valioso está bem ali diante dos olhos, na clareza monumental com que Woo filma aquelas motos pretas em velocidade sideral à caçar Van Damme. Pois quando essas coisas todas se encontrarem, ficaremos com o seu rosto, com seus músculos, com seus golpes pairando pelo ar até que ele caia no chão e comece a correr outra vez. Acendendo, apagando, acendendo e apagando. Assim como o fogo. Assim como os filmes de John Woo.

Por Rubens Fabricio Anzolin

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