I
Há muito que já se reconhece o cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul como um dos mais influentes realizadores de seu tempo. Não por menos, afinal trata-se do realizador responsável por filmes como Objeto Misterioso Ao Meio Dia (2000), Eternamente Sua (2002), Mal dos Trópicos (2004) e outros tantos mais. O apego da crítica mundial ao estilo do cineasta muito se deu, aliás, por uma espécie de encanto – palavra bastante cara ao cinema, mas também muito enganosa – que suas imagens eram capazes de fornecer. Do tigre hipnotizante em Mal dos Trópicos às memoráveis cenas de animismo de Tio Boonmee, Que Podia Recordar Suas Vidas Passadas (2010), muito de suas criações foram reduzidas a uma cartilha exótica, isto é, ao representante das florestas e das suas mitologias, alegoria pedestre que foi desenhada sem que se exercesse sequer um mínimo esforço em conciliar o compasso espacial e político de suas origens, do país em que filma, das pessoas que o atravessam. Na verdade, me soa curioso que seus filmes sejam sempre alvos de incontáveis certezas, filiações que nós, críticos, fazemos na tentativa de encontrar um norte para a matéria das imagens. Já vi – o que não quer dizer que discorde – o cinema de Joe ser considerado majoritariamente político ou transitório ou animista ou fantástico ou etc. No entanto, apesar do esforço preponderante em dimensionar suas obras diante de um caráter majoritário, escolho permanecer sempre na dúvida, no vacilo, e portanto tento sempre encarar seu cinema como uma espécie de tentativa em representar a transfiguração da matéria – seja ela viva ou morta, tradicional ou escondida, animada ou inane. Se há algo que prevalece no seu cinema – e sim, sempre rodeado de tantos outros elementos fundadores de sua obra – é um apreço quase doce de tentar captar o mundo e roubá-lo para dentro da câmera. Tornar tátil a abstração do universo, aquilo que se vê: a mudança das estações, o chegar do dia, o rolar das pedras, o surgir dos espíritos no verde escarlate do matagal.
Mesmo assim, se ainda há muito o que se discutir dentro das características que compõem o universo de criação de Apichatpong Weerasethakul – fotógrafo, videoartista, cineasta, cameraman e outras coisas além -, existe uma singela celeuma de mais de 40 curtas-metragens que costuram suas manifestações em vídeo de forma muito singular. Digamos que seja um excerto significativo de seu pensamento. Não um todo, mas uma ilha no inventário de intervenções deste sujeito no mundo. Em geral, filmes variados, bastante distintos uns dos outros, mas que se desabrocham para muito além dos longas mais conhecidos, formando ramificações em um pensamento que parece seguir o ciclo incessante do tempo e da vida, sempre em frente e em transformação, transeunte. Seus curtas podem não conter, talvez, o grande segredo que permeia sua obra como um todo, isto é, possivelmente não haverá ali exatamente o mesmo espanto do fantasma de Tio Boonmee, dos planos siderais de Cemitério do Esplendor (2015) ou o desvio incessante de Objeto Misterioso. Pouco importa, pois o que há ali é uma pequena manifestação de vida, uma tentativa centrada em fazer do cinema um retrato do esplêndido oferecido pelo mundo. Mais ou menos como a luz que Claude Monet esboçava a traços rápidos para chegar até a paisagem. Variações de um tom que levam todas ao mesmo lugar, o arrebatamento do que está em frente aos olhos.
II
Dos pouco mais de vinte curtas que assisti, o que chamou a atenção foi um caráter absolutamente positivo que Apichatpong impele. Há em seu olhar uma espécie de doçura para com aquilo que filma, coisa que ultrapassa em muito o campo da curiosidade. É sobretudo um desejo incessante de estar diante do estado do mundo, da essência das coisas. Existe, por exemplo, uma série de filmes/celebrações que o cineasta faz para representar a chegada de um novo ano. Em 2017, Joe filma as variações da luz do sol e as associa com as curvas digitais da cor, os níveis RGB (Red, Blue and Green); em 2019, retornam os cachorros de Apichatpong, mas ficamos mesmo é de sobressalto, amparados pelo leve sol que entra pelas frestas das cortinas. E ainda temos Prosperity for 2008, o mais belo de todos, filme que talvez por um gesto tão simples capture o que de mais belo possui o universo: o encantamento do fim. Nele, o cineasta registra o subir de um fogo de artifício – mais ou menos como uma faísca ou uma chama, uma luz que aos poucos se desmantela para explodir pequena no vazio da noite – e acrescenta a isso uma trilha melancólica de cordas. Se falar mais, estraga. Pois o importante é estar ali, dividindo o sentido das imagens com Joe enquanto, tal qual os anos, elas passam por nós. Esses três filmes, aliás, são sintomas de uma característica recorrente nos outros trabalhos, e que refletem um elo que soa essencial: fazer a mediação entre o mundo e a natureza, e capturar estes encadeamentos através do vídeo. Mais ou menos como se o cineasta pensasse: se não fosse pelo fato de existir a câmera, o cinema ou quem filma, também não seria possível experienciar tal beleza, transportar tal sensação. E daí surge um outro fator importante: em geral, Apichatpong sempre nos faz lembrar que está filmando, que estamos na presença da câmera. É um cineasta que pensa o plano junto com o espectador, que convida ao encantamento, abre a chave de seu mundo pedindo para que entremos.


III
Três dos seus melhores trabalhos nestes formatos são regidos por essa dinâmica, do convite ao filmar com, forjar junto: Mobile Men (2008), La Punta (2013) e Rolling (2015). Em Mobile Men, o plano se refaz a cada momento, e o que Joe busca em tela é encontrar uma uniformidade para o corpo em movimento, na traseira de uma caminhonete, em contrário ao espaço de árvores que se esvai, derretido pela velocidade. Um dos homens mostra as suas tatuagens, grita para a câmera, conta como as fez para conquistar uma garota; o outro rapaz tira a blusa, contrai os músculos; o realizador então segura a câmera, acopla nela uma nova lente, aponta para um sorriso rasgado que surge na tela, do rosto de um dos meninos, quase que transformado pela sensação arrasadora da velocidade, pela catarse de ser filmado. Nos filmes de Apichatpong, vale lembrar, é difícil tomar um sorriso tão somente como um sorriso. Em Mobile Men, ele pode ser também a materialização do estado de espírito, daquilo que contorna o sujeito, do vento que rebenta, do corpo em riste e em risco contra a gravidade, centro cirúrgico da imagem, ou até mesmo a felicidade em estar sendo filmado, estado de espírito que parece exemplificar uma relação entre natureza, plano e cinema, tudo junto em um corpo só, que grita e uiva em movimento.
Existe, aliás, uma inegável relação entre esse filme (e até mesmo La Punta ou Rolling) com o cinema de fluxo, no que tange à constituição de uma concepção de plano que se perde e se esvai à medida em que é feito. Mobile Men e La Punta são filmes descontinuados, filmados em plano-sequência como se fossem guiados unicamente pela retumbância e pelo magnetismo do que está à sua volta. É uma tentativa de encontrar pela imagem o movimento do mundo e reconciliar-se nele, seja na caçamba de uma camionete veloz ou em um carro que atravessa trovoadas para depois encontrar o brilho do sol. Mas o que talvez haja de mais comum entre esses filmes é que eles tratam de uma beleza insubstituível. Uma beleza que simplesmente é. E com a qual é impossível ponderar ou discutir para muito além disso. Retratos de um olhar que procura a sintonia com a grandeza dos elementos terrenos, uma magia que se crê entre nós, ao mesmo tempo que se recolhe a filmá-la pela impossibilidade e pela dádiva de mais nada necessitar fazer, visto que os planos se constroem ali mesmo, na toada das coisas, do que o olho pode enxergar nu, sem a necessidade de lente alguma.
Outros filmes também são acolhidos pelo mesmo sintoma, obras como Flowers and Banana Wind, Haiku e Fan Dog. Filmetas de curtíssima duração, arremedos de um, dois ou no máximo três planos, mas que parecem estar no mundo muito mais pelo prazer e pela possibilidade de se filmar do que qualquer outra coisa. Pois há também isso nos curtas de Apichatpong, ainda que exista uma certa regularidade no material, todos os filmes são conectados por uma certa capacidade de improviso, do ali e do agora: filmar o céu pois assim está o céu, e não há mais mistério nenhum nisto. Vê-lo é a beleza. E fazer da beleza cinema é a forma de retornar à isto em memória.
IV
E aí então chegamos no que talvez sejam os filmes que mais se relacionam com a grande obra de Apichatpong em si: Blue, O Estado do Mundo, Cactus River, Ashes, Vapour, Vampire e A Letter to Uncle Boonmee.
A Letter é uma prévia do Tio Boonmee, mas que recupera o espectro do espaço que Joe muito bem trabalhou desde Objeto. Vapour é também sobre isso, Vampire também. Filmes que vão caminhando junto com quem os olha, mirando pelo espaço para que dela possamos captar alguma essência cênica. Nos planos desses filmes, a câmera sempre se comporta como um cuidadoso forasteiro. Invadir, olhar, andar devagar, esperar o que irá acontecer. Olhar atento, sempre cuidadoso, com muito pouco balanço. Inegavelmente é uma forma de olhar para o mundo, abrir a porta do cinema e oferecer-nos a possibilidade de ficar com esses planos, com esses lugares. Pedir que habitemos o espaço junto dele, em conjunto. Sentar, olhar, esperar. Se perguntar de onde vêm a fumaça misteriosa de Vapour, quem são aqueles homens de verde na aldeia de A Letter e o que fazem afinal todas as mulheres adormecidas de O Estado do Mundo. Talvez a resposta esteja aí: estão todos interiorizando (como os personagens que caiam de sono em Síndromes e um Século ou Cemitério do Esplendor). Os filmes de Apicahtpong orquestram com maestria esse torpor, estado de espírito imperceptível, que parece não se prender ao terreno na hora de encenar. Se é impossível capturar um espírito, talvez o que Joe queira seja capturar a evasão, quando o espírito sai para passear. Esses filmes são um convite para dormir com eles, para abraçar o torpor desse estado de coisas que não divide a vida entre ventiladores, objetos, natureza, floresta e seres-humanos. É sobre uma sintonia invisível. Se o cinema clássico era uma hecatombe por filmar o irrepresentável – o deslocamento, o vento, o bater das folhas – o de Apichatpong também o é por capturar o outro irrepresentável: o espírito, a alma, o que se vai do espaço do corpo.


O estudo do espiriualismo já nos dizia no Século XIX que o espírito existia, e o descobrira através das experiências fotografia, do peso e das medidas. Os filmes de Apichatpong são um pouco uma extensão desse pensamento, representar o irrepresentável pelo que sobra no mundo material. Para saber que o espírito existe, é preciso filmar as pessoas, as crianças, os espaços. Desvirtuá-los pouco a pouco a convite para que participemos todos do mesmo transe, da mesma onda de vibração. Talvez sejam mesmo filmes feitos não para a carne, mas para o que tem dentro dela. Para acessar essa membrana tão espessa da vida.
Blue certamente é o mais arrebatador de todos estes, filmado ainda em 2018 e projetado especialmente como uma instalação. Nele, voltaremos àquele universo estático do plano que a obra tardia de Joe nos relegou. É um filme de conjugação muito similar a Cemitério do Esplendor, por exemplo. O plano de uma mulher deitada na cama, no meio de uma floresta com tendas projetadas nos revela uma espécie de retorno àquele Era Uma Vez que Joe praticou em Objeto Misterioso. As tendas, assim como em um teatro de fantoches, são trocadas, e estamos diante de uma encenação projetada do que é o mundo. Enquanto a moça dorme, a chama surge de dentro do seu coração, e um buraco de fogo é aberto em seu peito. Existe toda uma relação oral que se pode discutir em Blue, mas a verdade é que poucos planos são tão ímpares quanto esse. A especialidade de Apichatpong está exatamente no fato de que seus filmes nunca preparam o que irá vir na sequência, e o deslumbramento do que a imagem oferece é sempre algo catártico, pois não é previamente preparado. Poderíamos pensar em Godard, em Bressane, em Shyamalan. Poderíamos pensar em como John Ford filma o “acontecimento” em Vinhas da Ira (1940), e chegaremos então à compreensão de que Apichatpong é mesmo um cineasta deste panteão. Pois há sempre mais o que dizer para além da imagem, o plano guarda sempre a sensação, o convite a estranheza, ao mundo interior. O aparato estético não se sustenta por si só, pois excede a imagem e causa no peito um aperto, uma incógnita. Em geral, os filmes de Apichatpong nos convidam a dormir, a entrar nesse transe do subconsciente, da viagem, do torpor. Oferecer à junção entre corpo e espírito um lugar para navegar, para redescobrir essas entranhas guardadas às sete chaves. São filmes sobre sonhar.
Os filmes nos perseguem mesmo quando fechamos os olhos, dizia Jean-Claude Carrière. Pois bem, na dúvida, feche os olhos. Prefira ficar de olhos tapados, no escuro de si. Recostar a cabeça no travesseiro, como a mulher de Blue, abrir a janela do peito e olhar para dentro. Em algum lugar dessa janela, que diziam os antigos, dá para a alma (limite final entre corpo e espírito), você encontrará essa natureza reluzente, os cães na floresta mágica, o passaporte para um sonho… os curtas de Apichatpong Weerasethakul.
Por Rubens Fabricio Anzolin
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Thread com o link dos filmes
Que primazia de texto. Tenho descoberto Apichatpong aos poucos, ele chega até mim carregado de encantamentos. Seu texto exprime em 4 partes o que meus pensamentos fulgazes levariam anos para compor. Parabéns.
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Que texto querido! Vc capturou com delicadeza a doçura que o apichat expressa em seus filmes, ainda mais a sua relação com o olhar para a imagem/luz.
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