Na ruína das horas, sonhos de cinema | Ecrã #1

Foi inevitável assistir a Desaprender a Dormir (Gustavo Vinagre, 2021) e não lembrar do cinema de Carlos Reichenbach. Eu imagino que em uma relação entre os mestres do cinema brasileiro, esse talvez não seja aquele que conversa mais diretamente com a obra de Gustavo Vinagre, que é em suma bastante voltada ao documental, ao estudo do corpo e do sexo. É bem possível que não. Mas a partir do momento em que aparece em cena um rapaz maromba de cabelos platinados em verde como se fosse um desejo onírico daqueles dois rapazes a viverem isolados em um apartamento, inevitavelmente pensei em Carlão. Naqueles episódios aleatórios, barrocos, que seus filmes volta e meia proporcionavam. Algo como o Samuel Fuller recebendo um Oscar em um cinema de esquina de São Paulo em Falsa Loura (2007) ou o fisiculturista de sunga que estampa a Pastelaria Espiritual na cena do piano em Alma Corsária (1993). Mas apesar dessas eventuais coincidências, a grata surpresa de Desaprender a Dormir se dá pelo que ele tem de incomum com boa parte dos filmes brasileiros que me são mais caros: um frescor inventivo quase alucinado, meio aleatório, mas nada arredio, nada acomodado, bastante transgressor, aliás.

O panorama do que se pode ter acesso em um festival online hoje, eu diria, é até bastante limitado, porque quase tudo passa por um cenário pandêmico, do confinamento, muito ligado às estratégias do esgotamento. Nesse sentido, raras das soluções visuais fabricadas pelos ditos filmes-de-pandemia se assemelham aos procedimentos de Desaprender a Dormir. A começar pela intersecção de personagens, uma espécie de youtuber francês que urra pela revolução do sono (pois é), até o terapeuta hipnótico que faz os mais variados corpos saírem da depressão de um mundo arredio para colocá-los a descansar. Aliás, o que talvez Desaprender a Dormir tenha de mais interessante seja essa capacidade de alternância entre os espaços e os regimes, alguma coisa que se dá mais ou menos num transe parecido com o do sonho. As pessoas aparecem, os conhecidos, os amigos, os desconhecidos, àqueles com problemas avassaladores, àqueles de um lugar semelhante ao nosso para, logo depois, desaparatarem sem mais nem menos. 

Quer dizer, é inegável que Desaprender a Dormir tem um pouco essa síndrome do contemporâneo, esses reflexos daquilo que os corpos sentem em um momento tão catatônico, tão desesperançoso. É um pouco um filme sobre o processo do hoje, sobre as nossas angústias, e talvez sobre aquilo que fazemos confinados, quando ninguém está olhando. Coisas como botar o dildo pra secar, tomar sol, montar um vídeo pornô. Enfim, verdades de cada um. No fim das contas me parece um filme de reconhecimento, tanto para o Vinagre cineasta quanto para o Caetano Gotardo ator: é um pouco sobre se enxergar no outro, naquele tédio, sobre se recriar com outros nomes (Flávio e José) para poder enfim lidar com a imagem dura de si, aquela que faz Vinagre se espantar ao reconhecer-se no próprio vídeo pornô. 

Aliás, acho sobretudo que Desaprender a Dormir é muito menos sobre o sexo e o cu que sobre esses pequenos lampejos barrocos de cada um. Como o camboy que carrega consigo um livro de poemas meio indecifráveis ou o José pesquisador das filosofias do tempo marciano. É um filme estranho, é verdade. Mas que consegue esvaziar e esgarçar ao máximo esse espaço cerrado do confinamento. E fazer dessas paredes vazias dos dias uma história do autorreconhecimento em meio a um sem fim de desilusão, de projeção, de ficção e de narrativa. Não é sobre desaprender a dormir, mas sobre a surpreendente capacidade de reaprender a se olhar. E encontrar nesses espaços um passeio de torpor entre a realidade e o desespero das horas.

Por Rubens Fabricio Anzolin

Filme visto no 5° Festival Ecrã

Desaprender a Dormir pode ser visto aqui (de 15 a 25 de julho)

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