Sou da ideia de que certos filmes só deveriam ser assistidos na madrugada. Não à noite e muito menos no crepúsculo, mas essencialmente na madrugada. Nas horas mortas em que se pode vagar sozinho por um estado de espírito que se acessa estando na companhia exclusiva da solidão e da vertigem, da sensação de que a escuridão paira soberana acima dos corpos e que restará ainda muito tempo até que ela venha a se desfazer. Sendo, por óbvio, um hemisfério à parte, o cinema brasileiro é repleto de exemplares a este gosto. Realizações que, hoje, podem ser vistas como malditas, escondidas no porão de uma estética sensorial e selvagem, desfeitas de rédeas e compostas pelo impulso e pelo instinto carnal, que muito pouco sentido parecem fazer com os temas do hoje. Obras raramente irreplicáveis, e também por isso tão valiosas para aquilo que se convenciona chamar de “matinê”. Se a madrugada é a hora do sono do trabalhador, do descanso dos justos, é também o tempo disponível à programação imprópria, o instante único em que o mundo e as grades televisivas estão à parte de uma vigilância do bom senso. É, enfim, onde se pode ser livre. Ser o que se é sem nada a temer. Onde as vísceras e o sexo são permitidos. E tudo aquilo que não for fruto do mais impróprio desejo não terá lugar de direito nessa viagem pelo desvario.
Recentemente, encontrei-me com alguns destes filmes. Quase todos eles podem ser avistados por aí nas horas vagas do Canal Brasil, local que certamente guarda as melhores escolhas de cinema para quem, como eu, aprendeu a ver filmes na TV aberta, onde a experiência de sono e sonho se misturava com as imagens que passeavam pelas telas, abrindo as portas do impróprio. Em 1981, Ody Fraga, David Cardoso e John Doo conceberam uma dessas obras fundamentais ao espaço do cinema brasileiro mais oculto, um filme episódico chamado A Noite das Taras. São desventuras noturnas de três marinheiros operários, que pousam na Bahia de Santos e sobem a Serra em direção à São Paulo, onde se deixam levar pelo desejo e acabam assassinados por um grupo de mulheres, cada qual ao seu modo. O terceiro episódio desta série, em especial, é fundamental. Uma mistura de humor pastel com um anseio erótico desprovido de pudor. Nele, assim como em quase todos os filmes com este perfil, a vingança é o fim inevitável para aqueles que desejam desmedidamente. Único desfecho factível de um painel sombrio em que o sexo e a morte significam basicamente a mesma coisa.
O curioso é que esses espécimes de filmes-madrugada como A Noite das Taras, A Noite do Desejo (Fauzi Mansur, 1973), Espelho da Carne (Antônio Carlos da Fontoura, 1985), Liliam, A Suja (Antonio Meliande, 1981) e tantos outros, cada um à sua maneira, encerram em si próprios uma órbita sideral pela luz noturna, como se só fosse possível imigrar pelo imaginário da paixão carnal através das luzes artificiais que a cidade escura propicia. De uma forma ou outra, tais obras encerram conceito e conteúdo em si: não apenas são filmes para se assistir na madrugada, mas que só revelam o âmago e o destino de seus personagens diante destes contextos.
No entanto, se as horas malditas preservam o caráter da indecência, seus filmes tem como os maiores vilões justamente os responsáveis por podar a podridão do mundo e estabelecê-lo em direção à ordem natural das coisas, o corpo policial. No longa de Fauzi Mansur, por exemplo, os operários Pedro e Gilberto encontram o seu destino final somente após a chegada dos tiras, que constantemente entrecortavam a película do filme com cenas ríspidas da viatura com as sirenes em alerta, fazendo com que noite, cinema e putaria terminassem exatamente no mesmo lugar, no amanhecer. Que é também basicamente quando a vida retoma um curso natural, e os transeuntes voltam ao cotidiano ordinário, onde o sol é tão presente que mesmo o menor dos desvios precisa ser obstruído para o interior.
Da mesma forma que em A Noite do Desejo, o desfecho da personagem de Liliam no filme de Antonio Meliande é comungado à luz dos dias, no exato momento em que os policiais chacinam a assassina procurada quase que por engano ou por acidente, mas jamais por competência. O curioso nesses casos é a articulação de que este é um tipo de cinema não só afeito às tripas, mas que também é capaz de balizar dois lados de uma mesma moeda: quer dizer, as garotas de programa dos filmes de Mansur, assim como os tiras de Antonio Meliande, são ambos trabalhadores da noite, espécimes que sobrevivem e reproduzem-se em um mesmo quintal depauperado, e que mesmo sendo representados como antônimos – quer dizer, o bem e o mal, a ordem e a desordem – costumeiramente acabam todos no mesmo banho de sangue.
De certa forma – ou de várias formas – esses são filmes que importam uma estética do thriller americano e devolvem ela a um contexto brasileiro. Os pares são os mesmos, as meninas de programa, os detetives, os policiais, os cafetões, mas nada disso faz coro à uma estética anterior de cinema. Em sua maioria, são filmes que fazem um movimento subúrbio-centro, geralmente em Rio de Janeiro ou São Paulo. Um pouco como se nas redomas que abrigam os operários comuns fosse impossível descortinar-se ao proibido, e aí por isso o movimento é inverso, ao invés de abrigar-se na noite das casas, os trabalhadores abrigam-se longe do lar, viajam aos prostíbulos, às boates, aos grandes centros. São filmes que posicionam muito bem essa disparidade e esse anseio que a burguesia têm pelo que é da casta mais baixa, mas que são capazes também de contornar esse fetiche bizarro da maneira mais sanguinolenta possível. Em geral, obras onde a salvação é impossível ou improvável, pois todos os sujeitos da noite contaminam-se e misturam-se. Há uma cena especial em Espelho da Carne, por exemplo, onde após uma partidinha de poker, um dos personagens questiona ao outro: então, só não pode homicídio e sodomia?. O trajeto desses filmes é basicamente o inverso da fala, e o final de Espelho da Carne também. Pois o Brasil é um país da escuridão, onde tudo que não acaba no mar acaba no lixo, e tudo que não é permitido acaba também por ser permitido.
Hoje o Canal Brasil vai exibir As Feras (1995), de Walter Hugo Khouri, e antes passará As Massagistas Profissionais (1976), de Carlo Mossy. Não são filmes que se passam necessariamente na madrugada, mas são pelo menos irmãos enfermos destes tantos outros que comentei acima. Porque representam o que de mais singular é possível retirar de um cinema que nasceu para estar na catacumba, no avesso das horas mortas do dia-a-dia, capaz de abraçar os desajustados e os descabidos na mesma tela que o modus-operandi reina sóbrio e soberano durante as tardes nas televisões alheias.
Por Rubens Fabricio Anzolin