Gosto de pensar que os filmes de abertura dos festivais de cinema, antes de qualquer coisa, são uma espécie de aviso sobre o tempo presente, como uma indicação ou inclinação acerca do que se pensa sobre o agora. Não necessariamente são os filmes “urgentes”, mas costumam dizem algo a respeito do momento político ou estético que o mundo atravessa. É bem provável, também, que não sejam o “ouro” daquilo que as programações têm a oferecer, ainda que certamente cumpram um papel primordial de dar o tom do que estará por vir. O Dia da Posse (Allan Ribeiro, 2021) foi o escolhido para a abertura do Olhar de Cinema deste ano. A temática, aliás, não poderia ser muito distinta do que os tempos atuais pedem (ou permitem): é um filme de pandemia, resultado dos duros anos que a vida humana, em geral, se resumiu à banalidade do espaço doméstico, onde o olhar cinematográfico, muitas vezes, viu-se obrigado a mirar ao mínimo.
Diante deste estigma, O Dia da Posse é um par destes tantos outros filmes de confinamento urbano, daqueles em que toda a dramaturgia se debruça sob a égide do avulso e do banal. Encerrados em seu pequeno apartamento, o cineasta Allan e o estudante de direito Brendo aparentam estar mais preocupados com a vida alheia dos vizinhos do que com seus próprios conflitos. Juntos, o casal cozinha, lava a louça, reclama e brada no Facebook enquanto vê a vida lentamente passar. Há ainda uma presença familiar distante, remediada, que surge pelas telas do celular, tentando conciliar alguma paz para esses dias tão monótonos. Enquanto Allan filma, tanto a si quanto ao outro, Brendo performa e se desnuda, meio na contramão daquilo que o cineasta planeja para a composição dos planos. E daí surgem os conflitos mais instigante de O Dia da Posse, desse desejo de não permitido que habita em Brendo, a quem Allan constantemente procura podar, em detrimento do regime estético do filme.
Algumas cenas são centrais para o estabelecimento desta pequena guerra caseira: uma primeira, em que a câmera, fixada em um tripé – como se fizesse uma entrevista a sério, mais ríspida – filma Brendo descrevendo a estreia de O Dia da Posse, em que o cineasta questiona o fato de o namorado chamar seus filmes de “cinema experimental”; há uma segunda cena, em especial, onde se deflagra ainda mais um conflito de interesses, quando Allan reclama do fato de Brendo sempre convocá-lo para assistir Big Brother; por último, existe o coração do conflito, que é mais ou menos onde o filme vira do avesso: Allan filma Brendo tentando encenar uma escolha de roupas para sair, e quando menos se espera, aquilo que era emulado pelo que parecia ser um regime documental se transforma em um filme de tentativo, onde o banal se revela planejado, e tudo que anteriormente fora captado ganha novos significados. Brendo explode com Allan, explode com essa regência controlada do cinema, com a necessidade de soar natural sem ser natural. O personagem ameaça desistir da gravação, enquanto o companheiro pede que ele tente apenas mais uma vez. Depois da calmaria, a tempestade, enfim. A recompensa do monótono que não quer mais ser monótono e por isso nos revela que é falso. Possivelmente, esta cena do guarda-roupas (assim como a que os dois rapazes gravam um discurso para o Facebook) guardaria o que de mais interessante O Dia da Posse poderia oferecer, isto é, um descortinar das aparências para recair ao real. Ou seja, se viver junto é também conflito, se a vida aqui dentro importa mais que a vida dos vizinhos, se filmar exige demonstrar que se está encenando e não apenas registrando, então que se registre o que de mais interessante existe nestes interiores. Aquilo que não necessariamente soa bem aos ouvidos, mas que certamente reconhece o traço humano do personagem de Brendo para muito além do que capturá-lo a cozinhar ou lembrar da infância.
Aliás, a grande interferência que acomete O Dia da Posse está muito menos no conflito que existe entre esses dois personagens – um extremamente expansivo e performático, Brendo, e outro que controla o regime do tempo e das ações, Allan – e mais em como estes conflitos são constantemente mortificados pelo controle excessivo. Enquanto Brendo divide pensamentos, explode em emoções, fala aos cotovelos sobre sua infância e sobre o desejo de, um dia, ser presidente do Brasil, Allan parece muito mais preocupado em capturá-lo do que em necessariamente construir o filme com o companheiro. O sentimento que resulta dessa tentativa de registro é um tanto quanto agridoce: ou seja, metade é interesse pelo dispositivo, pelo ruído, pelo personagem que carrega o filme de maneira tão aberta e solene. A outra metade é um certo desafeto de quem está com a câmera, que controla, conduz e costura sem muito se expor. Evidentemente, é bastante difícil capturar o limiar entre a coragem e a covardia em todos estes gestos. Afinal, O Dia da Posse é certamente um filme interessante por provocar estes dois lados da moeda, por dar luz aos pequenos ruídos de um Brasil contemporâneo em confinamento, de dois corpos que tentam a todo custo partilhar algo um com o outro, ainda que nem sempre isso se torne possível.
A sensação, ao final, é agridoce. Certamente, o doce está nessa tentativa de conviver, de habitar um mesmo espaço, de investigar e investir em um outro almejando o resultado de um sujeito curioso e expansivo em cena. Já o azedo fica por conta de tudo aquilo que resiste à esta expansão, do corte sorrateiro que se dá justamente no momento em que as coisas pegam fogo e o conflito poderia despencar para algo mais carnal, indelicado ou indevido. Até porque, nem mesmo o banal e o confinamento são feitos através do planejamento ou do controle. É preciso revelar um pouco de si, para que, enfim, se possa descobrir aquilo que tão profundamente está escondido no outro.
O Olhar de Cinema começou. Pode ter sido a duras penas, e pode também não ter sido uma grande certeza, mas pelo menos é algo. Uma tentativa. Por hora, isso deve bastar.
Filme visto na cobertura do 10° Olhar de Cinema
por Rubens Fabricio Anzolin