Entre Mirador (Bruno Costa, 2020) e Rio Doce (Fellipe Fernandes, 2021) sobram semelhanças. A mais clara delas se dá na relação com as figuras paternas, norte final de dois homens desempregados e desajustados, Maycon (Mirador) e Thiago (Rio Doce). Na vida de ambos, a solidão é uma constância, o azar é uma certeza e o desacerto reina soberano. Tudo que puder dar errado, certamente dará. De diferentes maneiras, esses dois personagens também se vêem obrigados a lidar com a fuga: Maycon vê a ex-companheira partir ao léu, deixando-lhe a incumbência de tomar conta da filha pequena completamente sozinho. Já Thiago – incapaz de ser pai, incapaz de ser filho -, quebrado até os ossos, sem um puto nem para pagar a própria luz, acaba por descobrir que possui uma nova família, posicionada em um estrato social bem mais elevado e oriunda de um caso antigo vivido pela sua mãe. Aos seus modos, tanto Mirador quanto Rio Doce são espécies de tratados sobre a ausência: um primeiro, operado em nível máximo e objetivo, lânguido e latente, intenso até o osso; um segundo, bem mais subjetivo e subliminar, descompassado e silencioso, preocupado antes de tudo com aquilo que não está dito, que não sai da boca de ninguém.
Tudo que falta para Maycon, sobra para Thiago, e tudo aquilo que Thiago não carrega em si, Maycon transborda. É como se houvesse um espelho que separa esses dois personagens ao mesmo tempo distintos e semelhantes: dois homens brasileiros, nordestinos, de cor preta, com filhas pequenas para enfrentar o mundo. A solidão de um contrai a coragem do outro, quase como num estilingue. Thiago pode não ter nem luz nem grana, mas tem família – e de sobra. Tem quem comemore seu aniversário, lhe faça festa, cuide de sua filha. Thiago tem trampo, bico, moto e chamego. Tem até um baseado guardado para quando as coisas apertarem de vez. Ainda assim, é incapaz de se comunicar, escolhe guardar o peso do mundo nas próprias costas. Thiago fala baixo, tem molejo, contemporiza. Já Maycon não tem nada, nenhum amigo ou afeto significativo. Só um teto meio bagunçado, um parceiro beberrão e, por muito favor, um que outro galho para lavar a louça no restaurante português. Mesmo assim, é como se Maycon tivesse o mundo. Ou, pelo menos, fizesse de tudo para tê-lo. É pai, empregado, lutador (literalmente), e se preciso, é até garoto de programa. Enquanto um expande, o outro retrai. Enquanto um acumula, o outro extravasa.
Dito assim, pode parecer que Rio Doce e Mirador são filmes similares, parelhos, apenas com uma simples abordagem destoante. Mas a verdade é que há muito mais desvios do que encontros nas obras de Bruno Costa e Fellipe Fernandes. Rio Doce é cinema arthouse, do plano fixo, do olhar engasgado, filtrado num verde-mar que chega a fazer as correntes do ator brilharem em cena. Já Mirador está bem mais para um cinemão popular, narrativo, enérgico, quase mundo-cão. Cada qual com suas perdas e danos. Cada qual com seu brilho particular também. Em suma, são filmes imperfeitos, muito mais para um lado que para o outro, ainda que possam soar essencialmente brasileiros, daqueles em que se fala português reconhecendo a variedade do sotaque na ponta do ouvido, que se encena querendo mais a ficção que o real, querendo ir para frente mais do que para trás.
Que me perdoem os incomodados, mas não sou capaz de achar Rio Doce esse desafeto todo. Muito menos concordar que o naturalismo está matando o cinema brasileiro. Posso assinar que não é a única artimanha que existe, que muitas vezes falta poesia, falta a querer o rosto mais do que o banal. Agora, se não há uma beleza muito delicada naquela cena em que se comemora o aniversário de Thiago, quase a luz de velas, com um tanto de gente a atuar, a dizer palavras e gestos, a exprimir sensações enquanto a câmera se comporta como ouvinte diante dos rostos, querendo ser parte do espaço como quem é da mesma casa, então não sei do que se trata beleza. Há defeitos, sim. Há desfeitas também, como a relação esdrúxula que se estabelece com a família de ricaços, como a metáfora do leão de quintal ou até mesmo aquele final mais genérico, que tenta resolver as coisas sem que Thiago nunca lide frontalmente com o mundo. De todo modo, entre mortos e feridos, há ainda um quê de beleza quase redundante, que já traz na bagagem a doçura que ilustra o título do filme. Ao passo que Mirador, por sua vez, se equilibra nessa balança torpe entre a ficção extrema e um cinema que, não raro, pode soar descolado do que se faça por essas bandas ou do que o sistema rege como “obrigação”. Ainda assim, me parece haver muito cinema ali. Ou pelo menos uma tentativa bastante honesta em buscá-lo.
É sobre isso: são filmes imperfeitos, afinal, mas de uma honestidade admirável. Para com os seus erros e acertos. Dois filmes de um Brasil bastante incomum, aliás, onde se exige destes homens distintos que tomem frente à situações que comumente ficam ao léu. Se eles conseguem ou não, é difícil de dizer. O fato é que tanto Thiago quanto Maycon parecem tentar. Ou pelo menos querer. E isso, por si só, já parece valer de algo.
Por Rubens Fabricio Anzolin
Filmes vistos na cobertura do 10° Olhar de Cinema