Jamais concordaria que os filmes de Paul Verhoeven merecem qualquer defesa tanto por acreditar que não necessitam de uma como também porque, penso, eles próprios já cumprem tal papel diante da faísca que produzem em um sistema de obras cada vez mais achatado e comportado. Dizer que falar bem de Benedetta é praticar uma defesa soa um pouco como ter que reafirmar que Verhoeven (assim como Shyamalan, Milius, Fleischer ou Hitchcock) é um grande cineasta. É escolher olhar pela lupa ensaboada dos manuais-de-roteiro a arte de quem nunca nem leu ou ouviu falar de um. Ou seja, pedir que Verhoeven filme Showgirls (1995) quando quer filmar Benedetta é similar a pedir que Hitchcock filme Vertigo (1948) quando quer filmar Trama Macabra (1976) ou que Ferrara filme New Rose Hotel (1998) quando quer filmar Zeros e Uns (2021). Afinal, se vamos falar de Verhoeven, de seus filmes, é preciso que se fale com eles pela altura dos olhos, de seus próprios, e especialmente por aquilo que eles nos dão e jamais pelo que se espera que nos dêem.
Diante disso, não é possível que se diga que há alguma falha ou desvio em Benedetta. Em primeiro lugar, porque o elemento íntimo do cinema de Verhoeven reside antes de mais nada nesse ínterim: na falha das estruturas e no desvio das personalidades. Em segundo lugar, porque antes de se ver e ouvir, no cinema de Verhoeven se olha, e o ato de olhar para o cinema é ele próprio uma questão chave de identificar sempre as coisas que não estão lá e o respectivo mistério que elas são capazes de abrir dentro dos nossos sentidos.
Dito isso, afirmo sem dúvidas que não há em Benedetta qualquer código mais ou menos comportado do que aqueles forjados pelo realizador anteriormente. Há, sim, uma distinção, uma espécie de alquimia do que antes fora feito, mas qualquer seja ela não diminui em nada o apreço daquilo que agora está em jogo. Benedetta, assim como os outros filmes de Verhoeven, é, numa estrutura basilar, um filme só: aquele que convoca todo o pecado e peso moral para dentro dos corpos, e dá a ver justamente neles a sujeira de um mundo. É nesse sentido que importa muito menos a relação sexual que existe entre as duas mulheres pagãs, Bartolomea e Benedetta, do que a pulsão corrosiva e dominadora que se estabelece não só entre uma e outra como entre todas as personagens do convento de Pescia. É menos sobre o grafismo do Jesus Cristo espadachim com vagina do que sobre essa personagem equilibrada em um desvio de caráter abrangente, cuja expectativa acerca dos atos nunca se justifica ou se reconhece com exatidão, mas sempre se espreita pelo olhar vulgar da câmera – similar a criança que descobre um novo segredo pela fechadura da porta, ou mesmo à abadessa ateia (Charlotte Rampling) que condena o sexo em detrimento da tortura.
Quando Júlio Bressane lançou Capitu e o Capítulo (2021) uma questão me pareceu ficar no ar. Algo que dizia respeito a um efeito direto que o ato de mentir causava no corpo e na alma das personagens. À medida que Bentinho especulava sobre Capitu, o que mais se valorizava na obra de Bressane era uma espécie de arquitetura da sugestão, cuja qual era forjada por enquadramentos e movimentos de câmera que faziam evacuar o delírio, como se personagem e filme imaginassem, sonhassem e tremessem diante não da traição, mas de sua eventual possibilidade. Com Benedetta se dá algo parecido: não reconhecemos a verdadeira história da freira milagreira, mas as pistas estão no ar. Não saberíamos jamais dizer se Benedetta é mesmo santa ou se forjou cada uma das chagas de seus corpos. Frente a isso, o que Verhoeven oferece, e portanto especula, é efetivamente um jogo de sugestões provocadas pela histeria coletiva dessas possibilidades. Não à toa que uma das mortes mais marcantes do filme é fruto justamente de uma incerteza, quando Christina (Louise Chevillote) acusa Benedetta de falsa divindade e por consequência acaba se suicidando. Essencialmente, não existe nada de mais fundamental neste filme que a relação entre o desvio e o corpo: todo aquele que chega perto demais do mistério de Benedetta acaba danificado, já que nenhuma dessas personagens compreende por essência o valor do pecado. Antes é preciso abraçá-lo e dançar junto a ele para depois poder assimilá-lo.
É desse sistema de aceitações e tentações que surge aquela que é a cena mais especial de Benedetta, a conversa secreta entre Rampling e Virginia Efira, bem ao fim do filme. Porque se há algo de essencial naquilo que constitui o segredo, certamente isso está fundamentado no potencial de mistério que ele revela. Quando enfim Felicita assume a descrença, desvelando a mentira, é que se realiza qualquer capacidade de redenção. Mas não sem antes perceber que o sintoma do delírio e da luxúria se reflete na carne (na peste negra) – e nisso Benedetta é bem mais Tropas Estelares e O Vingador do Futuro que Showgirls -, fim último de um cineasta que quase sempre filmou em janelas achatadas, privilegiando o deslocamento espacial desse objeto de tesão e tensão, quase sempre depauperado pelo mundo.
Se Benedetta não é o filme da vulgaridade ou da escatologia, como se poderia querer, é por estar justamente mais preocupado com os pecados da alma do que com os pecados do corpo. No fim das contas, esse último é muito mais um modelo, uma escultura, cuja função final é a de arrefecer e receber os desvios que provém do espírito, até que ambos possam se desfazer no fogo conjuntamente. Quando estes finalmente se encontrarem e não mais se desconjuntarem, restará apenas o pecado a ser pago. E Verhoeven estará lá para filmar.
Por Rubens Fabricio Anzolin