1. O grande trunfo de Paul Thomas Anderson é como escala seus atores. E principalmente os atores que escala. Sean Penn, Tom Waits, Maya Rudolph, Bradley Cooper, Benny Safdie, John Michael Higgins, Harriet Sansom, Joseph Cross e, finalmente, Alana Haim e Cooper Hoffman. Todos eles com tiques e adereços particulares, caracterizações muito específicas que funcionam, antes de mais nada, para descolá-los do restante dos personagens. São sujeitos que já vêm com um endereçamento específico, fabricados a partir de uma concepção prévia (o cabelo, a peruca, os dentes tortos, as espinhas no rosto) que automaticamente lhes garantem um local de destaque ante à câmera. São eles os protagonistas, os rostos que destoam da bruta massa do todo. Nada mais importa.
2. As figuras de Paul Thomas Anderson são cerradas, uníssonas. Até tentam, mas jamais fazem parte de um universo de seres que compartilham entre si um sentimento, uma mesma aura ou espaço geográfico que lhes acolha como pares. Tratam-se de personagens feitos para soarem individualistas: eles são eles, cada um por si, e é preciso que cada um destoe do resto. Mesmo diante de um filme de outsiders é necessário que haja os frontmans.
3. Tudo no cinema de Paul Thomas Anderson é sobre esse movimento complexo, de destacar o eu do outro (lembrar do jantar entre Benny Safdie e Joseph Cross, lembrar que Alana Haim se vangloria por ser uma política que vai mudar o mundo e não uma dona de fliperama). Não há nada nessas interações que seja sobre o nós. Licorice Pizza nada tem a ver com filmes como Jovens, Loucos e Rebeldes (Richard Linklater, 1993) ou com Era Uma Vez Em… Hollywood (Quentin Tarantino, 2019). Estes últimos são filmes sobre o todo, sobre o espaço que se divide, a história que se reconta, o verão que encerra as aulas de uma geração inteira a vibrar numa mesma sintonia em conflitos internos diversos. Filmes que dizem mais sobre as tribos que se unem do que sobre aquilo que as separa.
4. O cinema de Paul Thomas Anderson é lânguido, comprido, espaçado. De cabeça, lembro apenas de dois de seus filmes que não foram filmados em cinemascope, Trama Fantasma (2017) e Vício Inerente (2014). Os demais, geralmente operam na lógica dos planos abertos e achatados, compostos por movimentos longos, categoricamente chamados de hipnotizantes, com o intuito de alargar sempre ao máximo as iluminadas dimensões espaciais do quadro. Aliás, não me parece exagero nenhum pensar que seus filmes todos se debruçam diante desse truque da câmera: tratam da grandiosidade que esconde o movimento, do zoom in secreto que faz com que o protagonista (ou, melhor dizendo, os protagonistas) fiquem marcados por uma exclusividade no ato de filmar, quase uma seletividade inconsciente que provém das lentes do ecrã. Querendo ou não, a câmera gira, tropeça, balança, e sempre acaba apontada para o perfil de um desses sujeitos. O mais curioso em tudo isso é que, para cada balé técnico que o cineasta fabrica, há sempre um movimento diametralmente oposto que faz questão de abafá-los, de fazer soar como que natural algo que tem na sua mais crucial fundamentação justamente o anti-naturalismo. Em resumo: é um cinema escondido em si mesmo, que quer parecer sem se fazer aparecer. Afinal, quando uma câmera balança, a grande graça é, precisamente, vê-la balançar. Não escondê-la rosto envergonhado de um protagonista.
5. Li em algum lugar, não me recordo precisamente onde, que é um pecado o fato de Paul Thomas Anderson ser um cineasta de grandes cenas e jamais de grandes filmes. (Até acho O Mestre [2012] e Vício Inerente [2014] ótimos filmes, mas concordo de maneira exemplar com a afirmação). Me soa como se, no arremedo do todo, tudo se tratasse de um grande conjunto vazio. Ou superlativo demais, ou ambicioso ao extremo, ou mais preocupado com o gesto técnico do que com o próprio efeito formal em si. Não sei, a verdade é que não me encanta. No fundo, o que mais me interessa em seu projeto de cinema é exatamente aquilo que comentei no início deste texto: os atores. Por que, se o que Paul Thomas Anderson mais procura fazer é balançar a câmera até que ela alcance o cerne de seus protagonistas, é pelo menos um deleite quando ela, enfim, chega lá, onde não é mais preciso que o cineasta opere a emoção da mise en scène e sim que os gestos e corpos tragam à tona esse desejo tão brutal em dizer algo que, por mais mundano que seja, no fundo quer soar extremamente significativo.
6. Voltemos à Licorice Pizza. Diferente dos filmes iniciais da carreira de PTA, esse talvez seja, junto com Embriagado de Amor, o que mais tenta soar como um filme inocente. Para isso, diminui-se todas as escalas narrativas: não é mais sobre vidas que se cruzam, sobre um minerador ganancioso, sobre adaptar um dos maiores autores americanos dos últimos cinquenta anos. Agora, aparentemente, é sobre o amor de dois jovens. Mais especificamente, sobre a sexualidade impossível que emana dos corpos ardentes, sobre um destino que nunca se vê selado em sua possibilidade. Em geral, dois personagens que correm (literalmente) em direção contrária daquilo que se espera deles. Gary quer o estrelato, ser um grande empresário, um ator infantil, mas quando vê na sua frente o protótipo de William Holden – um dos grandes atores de seu tempo – abandona a pose de galã juvenil para atirar-se aos prantos aos braços da amada. Com Alana é a mesma coisa. Quer ser importante, não se deixar penetrar por esse mundo infantil, lúdico, menos sério, mas a toda e qualquer oportunidade volta atrás do rapaz a quem sempre recusou amorosamente. Enfim, são corpos que se buscam e necessitam, mas que nunca dão o braço a torcer para performar diante de seus sentimentalismos mais primários. É preciso que tudo seja sobre um jogo de poder, jamais sobre uma paixão das mais fervorosas, quase juvenil – o que, talvez, soasse mais honesto.
7. É bem possível que, ao dizer tudo isso, eu contrarie o que boa parte dos amigos e colegas pense não só sobre Licorice Pizza mas sobretudo sobre a obra de Paul Thomas Anderson. A verdade é que gostaria também, eu, de ter explicações mais plausíveis e, quem sabe, mais sólidas e fundamentadas de por que seus filmes não me causam impacto semelhante ao que é causado em grande parte da comunidade cinéfila. Sendo bem honesto, diria que não gosto de filmes que soam espertos demais. A sensação que seu cinema me traz é justamente esta, de alguém que quer sorrir o tempo todo para o espectador, que espera a melhor hora para soltar a punchline, que preserva toda a ação e todos os movimentos até que chegue o momento mais adequado para que os protagonistas se reencontrem. É como se PTA soubesse que, a cada novo personagem inserido na trama, a cada desvio do núcleo central (que é a paixão entre estes dois sujeitos), este mesmo ganhará mais relevância por vir acompanhado de Sean Penn ou Bradley Cooper – atores magnéticos, capazes de transformar um bom texto se transforme em um deleite aos olhos. Em suma, acho extremamente formulaico. É uma ótima peça de tapeçaria, mas, se debruçarmo-nos um pouco mais em cima de todo o espetáculo, é como se as cortinas caíssem e restasse apenas a poeira do palco.
8. Talvez o cerne disso tudo seja o título do filme, “pizza de alcaçuz”. Bem, a verdade é que não quer dizer nada. Daí que surge a questão, pois é quase impossível que essa coincidência soe como natural vindo de um cineasta cuja principal marca é um autocentramento abissal. Parece mais uma piada sem graça do que uma piscadela de olho genuína. Difícil acreditar que um realizador tão obcecado pelo controle esteja na esteira de jogar ao léu o título de um filme. Pode ser apenas má fé minha, mas não deixo de ficar desconfiado.
9. Por fim, a ideia é que esse texto tivesse, inicialmente, dez notas. Um subterfúgio meio raso que surge quando, por vezes, não consigo desenvolver a pleno um pensamento sobre qualquer filme. Não sei se serve de algo, mas queria realmente ter gostado de Licorice Pizza. E também não acho Paul Thomas Anderson um cineasta indefensável ou desprezível. Talvez, só não seja para mim. Cinema e controle nunca foram coisas que me interessaram muito quando colocadas de forma conjunta. É claro, há que se ter noção do que se faz, mas mais do que isso, há que permitir que a emoção desvie do controle, das rédeas do cineasta, que as coisas tomem vida por conta própria. Quando a câmera de Paul Thomas Anderson procura o rosto anti-estelar de Alana Haim, sei que é ele que escolhe olhar para ela, e não a câmera que a busca por um magnetismo cênico ímpar. Que a atriz seja capaz de segurar toda essa barra, bem, é realmente um feliz golpe de sorte. Mesmo que esse se escoe da memória em poucos segundos. Em menos de uma semana, Licorice Pizza desapareceu completamente de meu pensamento. Acho que isso diz muito sobre o que penso de Paul Thomas Anderson.
Por Rubens Fabricio Anzolin