As listas propostas para a votação da Cinefilia Brasileira, organizadas pelo Pedro Lovallo, conjugam sempre um desafio considerável. Antes de mais nada, considero refletir toda minha trajetória cinéfila até encontrar um meio-termo. Fazer uma lista é um exercício de vaidade, de construção de pensamento e de narrativa cuja ordem dos filmes desencadeia. Já pensei muito na hipótese de não colocar os filmes em posições hierárquicas, do primeiro ao vigésimo, mas acredito que essa provocação de dizer que “isto” está acima “daquilo” demarca não apenas uma memória que os filmes ativam em nós, como também uma tentativa de realocá-los frente a essa memória, encarando de frente a história e o impacto subjetivo das obras de arte.
Vejo A Better Tomorrow (John Woo, 1986) em uma posição muito superior a filmes de cineastas tão mais caros a mim – Bigelow, Eastwood, Garrett, Carlão, Carpenter – e, mesmo assim, entendo que, para um filme menos lembrado de Woo, é mais importante essa valorização do que para figuras mais condecoradas em meu imaginário. Talvez seja difícil entender tal raciocínio, afinal de contas, listas são sempre vítimas de um certo humor, de uma predisposição diária para se lidar com os filmes, e do quanto nossa memória afetiva é capaz de ativar aquilo que definitivamente marca a experiência do cinema em nós, que são as sensações.
Há ainda outro fator comensal, o tal do tempo. A lista do Rubens feita em 2022 não seria a mesma feita em 2023: teria mais filmes, mais nomes, e uma outra noção de equivalência entre obras que se dá quando novos cineastas são visitados e descobertos. Não vi Paulo Rocha, Marguerite Duras, Peter Chan. Não vi Mélo (1986), do Resnais. Não vi boa parte dos filmes feitos por Agnès Varda nesse período, salvo uma ou outra exceção mais conhecida. Não vi Beijos de Emergência (1989), que, a julgar pelo meu fascínio por Garrel, estaria também nessa lista. A verdade é que somos reféns do tempo, das cópias e do invólucro materialista do cinema.
Para tanto, vale o velho clichê: enviasse essa lista dois dias antes ou dois dias depois, os filmes todos poderiam estar em lugares diferentes. Daí a graça. Daí também os desvios.
Por fim, preparei algumas notas sobre os filmes escolhidos, do mesmo modo que tento sempre preparar uma lista maior quando essas votações ocorrem. No caso das listas dos Anos 2000 e dos Anos 90, deixei no blog uma versão com meus 100 favoritos dessas décadas. Dessa vez, para combinar com a década, meus 80 dos… Anos 80. Com algumas regras e condições: 1) Sem repetir cineastas (Carpenter, Monteiro, Rohmer e De Palma poderiam formar uma lista de 20 filmes sozinhos, por exemplo); 2) Juntando longas, médias e curtas, visto que não entendo qualquer separação possível entre eles; 3) Apenas com produções feitas entre 1980-1989; 4) Considero Conhecendo o Grande e Vasto Mundo, de Kira Muratova, como um filme dos Anos 70, caso contrário, ocuparia a primeira ou segunda posição; 5) Os últimos 10 filmes são obras de cineastas do Top 20 que poderia, facilmente, substituir os elegíveis nas primeiras posições.
Pois bem, aí vai.
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— Dez filmes de cineastas do Top 20 que poderiam estar no Top 20.
O Matador (John Woo, 1989)
48hs. (Walter Hill, 1982)
Carmen, de Godard (Jean-Luc Godard, 1983)
Ela Quer Tudo (Spike Lee, 1984)
Profissão: Ladrão (Michael Mann, 1981)
Parceiros na Noite (William Friedkin, 1980)
O Enigma de Outro Mundo (John Carpenter, 1982)
Anjos do Arrabalde (Carlos Reichenbach, 1987)
Os Intocáveis (Brian De Palma, 1987)
O Raio Verde (Éric Rohmer, 1986)
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70. Conta Comigo (Rob Reiner, 1986)
Mais do que qualquer nostalgia, o toque de conto literário que o Rob Reiner dá pra essa história de formação me parece ser a mágica da coisa. E o elenco é maravilhoso.

69. Rocky IV (Sylvester Stallone, 1985)
Entre o pastiche dos músculos e o enviesamento da Guerra Fria, sobra uma narrativa de amizade e esperança bastante peculiar.

68. A Noite das Taras (David Cardoso, John Doo e Ody Fraga, 1981)
Certa vez, escrevi um texto sobre minha relação com o cinema brasileiro que passa nas horas tardias da madrugada, e que só é permitido nesse horário onde as pessoas ordinárias habitam o sono e permitem o espaço para uma imaginação perigosa, delirante e, sobretudo, desafiadora. Certamente, esse filme seria irreplicável nos dias de hoje. Mas, da premissa básica até a última das três histórias, muita coisa pode ser refletida sobre o que é e onde está as fundamentações basilares do nosso cinema.

67. A Cor do Dinheiro (Martin Scorsese, 1986)
Conto moral de Scorsese, que se embasa numa relação fundamental entre Tom Cruise e Paul Newman. Também gosto muito de Depois de Horas, feito um ano antes, mas acredito que esse aqui tenha um papel mais fundamental na formação da minha cinefilia. E também gosto muito de observar como Scorsese filma esses espaços transitórios da jogatina, os entre-lugares que são ao mesmo tempo céu e inferno dos personagens, espécie de paraíso e purgatório. De forma ou outra, me parece que deve bastante aos thrillers de bandido dos Anos 70, filmes de Friedkin ou Mann, porque reside nele um elemento moral de pegar tudo sair fora enquanto há tempo.

66. Weird Science (John Hughes, 1985)
Muito curioso e engraçado as metáforas que um cinema de comédia americano conseguia gerar nessa época. Essa é uma das coisas mais desconjuntadas que conheço e por isso mesmo muito valiosa.

65. Batman (Tim Burton, 1989)
Até hoje, um dos melhores – senão o melhor – filme do Batman já feito. Entende como poucos a mística das histórias em quadrinhos e abre espaço para uma encenação vaidosa, exagerada, muito mais próxima a um expressionismo que a uma leitura de realidade. E deve ser também um dos melhores filmes da carreira do Burton.

64. Sexo, Mentiras e Videotape (Steven Soderbergh, 1989)
Independente do que quer que a carreira do Soderbergh tenha se transformado, esse é um filme fundamental na formação da minha cinefilia. E tem o James Spader num dos melhores papéis que já vi.

63. Mala Noche (Gus Van Sant, 1986)
Acredito que foi só com Gerry que Van Sant voltou a encontrar o sentido de seu cinema, mas é bem perceptível que ele já se revelava de forma muito clara aqui. Um filme barato, de luzes e sombras, onde a busca pelos anseios psicológicos dos personagens encontra metáforas muito valiosas já nesses primeiros passos.

62. Um Tira da Pesada (Martin Brest, 1984)
Cinema-dominó (ou o gênero pode ser revisto e liquidificado). Muito interessante ver como Brest atingiu seu auge nesse trabalho, e foi capaz de concatenar diversas frentes em um só suco de cinema. Um filme rápido, em que as mudanças de ritmo e trama se alternam a medida que o tempo passa, indo de um caminho desconexo à outro sem perder a energia.

61. Liliam, A Suja (Antonio Meliande, 1981)
Vi esse filme ser muito pouco citado – ou, melhor, quase nada citado – em outras listas. Talvez esteja aqui porque minha experiência com ele é muito particular e reveladora. Assistido em uma das madrugadas fúnebres de Canal Brasil. Fiquei com essa voz maldita de Liliam, com esse jazz que vai rodando todas as cenas, com os policiais que só se dão bem por acidente. Em certo sentido, me sentia como a mãe da protagonista — no travesseiro, doente, sem muito o que fazer, sonhando com cenas de cinema, sonhando com desgraças. Levantei, fiz um café, assisti a Liliam, A Suja. Fiquei eu igual a velhinha… meio grogue, meio inerte, atingida pelas luzes de uma cidade perdida, de uma alma vagante. É isso. Primordial para que se entenda muita coisa.

60. God’s Angry Men (Werner Herzong, 1980)
Sempre admirei em Herzog a capacidade de se colocar dentro do olho do furacão, de querer entender a essência humana não apenas pela tragédia mas também por aquilo que resta dela, no calor da hora e das transformações. Aqui, é como se os espaços trágicos do mundo dessem lugar a um personagem que Herzog filma sem muitos julgamentos, deixando o mesmo ser derrotado pelas próprias palavras vistas em cena. É uma espécie de apaziguamento conflituoso. Um espaço que se dá ao inimigo para que ele mesmo se destroce.

59. Nascido Para Matar (Stanley Kubrick, 1987)
Para mim, o melhor Kubrick junto com De Olhos Bem Fechados. Menos centrado num gesto magnânimo de cinema e bem mais entregue às forças do delírio.

58. Arizona Nunca Mais (Joel e Ethan Coen, 1987)Hoje em dia, é provável que os irmãos Coen ocupem um lugar bem menos nobre no coração da cinefilia. Para mim, muitas coisas ainda carecem de revisita, mas o lugar que alguns filmes como Millers Crossing e Barton Fink possuem no meu coração é inegável. Talvez o projeto tenha se tornado magnânimo demais, mas imagino que os filmes iniciáticos ainda preservam um pouco desse estoicismo criativo. As cenas de Nicolas Cage com o bebê, aqui, já valem o filme todo.

57. O Baiano Fantasma (Denoy de Oliveira, 1984)
Das coisas mais curiosas e criativas que o cinema brasileiro já inventou.

56. Soléil (Pierre Clémenti, 1988)
Experiência muito aterradora de Clémenti, que me põe sempre a pensar sobre o por-vir, um cinema atento às alterações da natureza e em como isso pode transformar-se e diluir-se em matéria cinematográfica.

55. Efeitos Especiais (Larry Cohen, 1984)
Como tudo em Larry Cohen, a caricatura transforma-se num grande aparato cênico de luzes e explosões, onde andamos sempre no limite da literalidade das coisas. Belíssimo filme.

54. Pavor na Cidade dos Zumbis (Lucio Fulci, 1980)
Para muitos, um Fulci menor. Mas que para mim segue sendo um dos filmes mais engraçados e eletrizantes que conheço. Com o horror permanecendo sempre à espreita de qualquer vacilo. Perfurando os olhos até que se encontre o cinema.

53. Into the Night (John Landis, 1985)
Tempo dilatado e entremeado pelos encontros da tela. John Landis no alto da sua forma, e que talvez tenha encontrado aqui o seu melhor filme.

52. Recordações da Casa Amarela (João César Monteiro, 1986)
Primeiro capítulo de um dos personagens mais fundamentais da história do cinema.

51. Muito Riso e Muita Alegria (Peter Bogdanovich, 1984)
Um enorme Bogdanovich, dos mais singelos no que diz respeito à captura da amizade como experiência humana absorvida.

50. Junkopia (Chris Marker, Frank Simeone e John Chapman, 1981)
Nunca assisti a Sem Sol do Marker, e tenho certeza que é bem possível que ele estivesse nessa lista. Mas preciso dizer que acho Junkopia um dos experimentos mais bem-sucedidos do cinema dele. Uma coisa miraculosa que, em cinco minutos, vai descambando da reflexão ao terror profundo, até encontrar um último corte derradeiro.

49. Veludo Azul (David Lynch, 1986)
Acho que a obra de Lynch cresce significativamente dos Anos 90 para frente, quando encontra um espaço de criação e interpretação mais virtuoso para suas ideias desconexas e metafísicas. De qualquer modo, Veludo Azul é um grande ensaio desse tipo de cinema, onde coisas muito caras a esse realizador já estão postas em cena, principalmente num jogo de luzes teatral oferecido pelo personagem de Hopper.

48. Elefante (Alan Clarke, 1989)
De um formalismo cabal até que encontre o triste e derradeiro significado de seu dispositivo cinematográfico derradeiro.

47. Knightriders (George A. Romero, 1981)
Romero sempre foi um grande cineasta da decupagem dos espaços, e a forma como dita o ritmo dessa aventura frenética tem muito a ver com sua maneira de ver o mundo.

46. Possessão (Andrzej Zulawski, 1981)
Tratado do corpo. Gosto muito de como o Zulawski transforma o conflito psicológico do personagem do Sam Neill em mise-en-scène — o que me parece uma espécie de transcrição de um melodrama amoroso/conflituoso de espaços (Fassbinder) pra um cinema de palco e obsessão, quase em apelo teatral. Nesse sentido, chega a remeter até aos trabalhos do Kubrick (O Iluminado, especialmente), mas justamente onde existe uma relação fálica com o ambiente em volta — a tentativa de elevar o tom das coisas (recorrente ao Kubrick), Zulawski transforma isso em um jogo opaco e permanente na frente da tela. A questão pra mim acaba sendo mais onde isso desemboca, porque o filme em si parece perder o interesse nesse psicologismo do corpo enquanto carne para materializar isso em sangue e matéria. Mas é um ótimo exercício, definitivamente.

45. O Silêncio do Lago (Robert Sluizer, 1988)
Filme muito delicado sobre os caminhos da noite e as possibilidades que o silêncio pode proporcionar a um thriller de sequestro.

44. Rage Net (Stan Brakhage, 1988)
Difícil escolher qualquer filme de Brakhage para constar aqui, mas assim como Blue Ice (1994), penso em Rage Net como uma das obras que mais me transmitem uma sensação de agonia — quer dizer, mais do que experienciar as mudanças e alternâncias do cinema, é como se entrássemos de cabeça num estado de espírito.

43. Duro de Matar (John Mctiernan, 1988)
Mais que qualquer coisa, o dilema moral que os personagens de Willis e Rickman espelham são fundamentais. É uma espécie de peça que o cinema moderno repetiria aos limites, entregando cada vez mais elementos para o deleite de uma platéia ansiosa por ação e desfechos nada factíveis. O encontro de ambos, suas maneiras de se contraporem e contracenarem, também torna essa experiência ainda mais satisfatória.

42. Quarto 666 (Wim Wenders, 1986)
Várias escolas e histórias de cinema proporcionadas pelo carisma de Wenders através de seu hábil tato documentarista. Muito curioso entender a paranoia instaurada pelo vídeo àquela altura dos Anos 80, e também muito significativo ver como cada uma dessas figuras reage a este evento. Da presença da Spielberg ao contraponto de Godard, da maravilhosa entrevista de Fassbinder ao centramento absurdo de Ana Carolina. Deleite puro.

41. O Sangue (Pedro Costa, 1989)
Pontapé inicial da carreira de Costa e que deve muitíssimo a sua cinefilia apaixonada pelos policiais noir e os filmes B de horror. Sempre retornar ao que João Bénard da Costa escreveu sobre O Sangue para entender a verve fundamental desse cineasta de casas e casebres, de espaços rachados e triturados, do amor dos amantes que sempre guia a vida e o futuro de suas ações. Um filmem escuro, embebido nas luzes e sombras da paixão e da solidão.

40. En rachâchant (Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, 1982)
Mais do que os outros, esse é meu contato primeiro com a obra dos Straub e penso ser também um dos períodos mais afiados de suas carreiras. Espécie de modelo macro daquilo que seu cinema representa enquanto modelo cênico e de encenação, reduzido a poucos minutos de trabalho.

39. Nos Bastidores da Notícia (James L. Brooks, 1987)
O que mais me encanta no cinema do Brooks é a capacidade que tem de controlar a emoção dos atores, a hora certa de deixar-se levar e também de estancar a encenação. Um filme muito melancólico sobre três vidas que se cruzam e se separam nos bastidores dos jogos de poder do jornalismo televisivo. O trio principal é delirante, o que, de cara, me faz lembrar como William Hurt e Albert Brooks eram atores fabulosos, e como Holly Hunter possuía um olhar inconfundível. Ah, e a condução de câmera é maravilhosa.

38. Cyborg (Albert Pyun, 1989)
Filme de ação muito seco, cujo ponto nevrálgico se dá na estranheza das formas e dos monstros apocalípticos que Van Damme enfrenta. Uma leitura sociológica e pós-apocalíptica que se aproxima muito mais do punk rock do que necessariamente da ficção científica. Sobre lugares desérticos e inabitáveis e sobre um esquisito fantasma diabólico do colonialismo.

37. O Último Virgem Americano (Boaz Davidson, 1982)
Isso aqui deve ter se perdido na última lata de lixo do cinema americano e justamente por esse fator ele me interessa muito. Antes de mais nada, é preciso que se diga que é um filme brutalmente doloroso. Nada conciliatório para com sua juventude e com seus anseios. E cruel como poucos poderiam ser. A mise-en-scène é um tanto quanto taquicárdica, meio que pisando em falso, com alguns planos desconjuntados. Mas me parece que nesse caso, todo e qualquer erro é um acerto. E daí a gente consegue tirar alguma coisa bem particular do filme de Davidson. Se não é necessariamente qualitativa, é preciso dizer que pouca coisa parecida foi feita no período. Com tamanho grau de pessimismo, no caso.

36. Robocop (Paul Verhoeven, 1987)
Um dos maiores exemplos da orientação sociológica da sociedade americana que só um autor sem escrúpulos como Verhoeven é capaz de fornecer.

35. Amantes (John Cassavetes, 1984)
Se tivesse tido tempo para uma revisão, subiria muitíssimas posições. Mas digamos que esteja aqui a alma da encenação de Cassavetes, esse cinema desconjuntado, onde seguramos na mão do cineasta até os limites de sua improvisação. Com um jogo de atores muito particular, que lembra sempre as sequências de jazz que Cassavetes tanto amava.

34. Videodrome (David Cronenberg, 1983)
Entre o frame, o delírio, a literatura B e o cinema de Horror, estava para nascer um dos mestres dessa arte de fantasmas. O corpo como sintagma da doença moderna e também como reflexo de dias cada vez mais duvidosos e enigmáticos que a revolução do vídeo apresentava.

33. Espelho da Carne (Antônio Carlos da Fontoura, 1984)
A classe média brasileira desnudada naquilo que ela tem de mais sórdido e sujo. Um jogo muito engraçado de cenas onde se leva ao limite da honra e da moral os anseios sexuais de seus personagens. Um Rio de Janeiro sombrio, em que toda esquina guarda um segredo sobre si próprio que os personagens ainda não estão prontos a descobrir. Coisa que os diálogos naquela mesa de jogo de pôquer revelam com uma maestria sem tamanho.

32. From Beyond (Stuart Gordon, 1986)
Filme brutal e criativo sobre os usos do corpo como ferramenta. Chega a ser escroto o modo como usa as paisagens e os cenários, mas é capaz de fundir isso de modo muito natural à sua viagem narrativa. Tem algumas cenas valiosas e um desfecho que, de tão estranho, chega a ser catártico.

31. O Massacre da Serra Elétrica II (Tobe Hooper, 1986)
Hooper na sua forma mais pura de catarse. Menos improvisado que o primeiro e muito mais próximo desse exagero cênico nevrálgico. Continuação espiritual de Pague Para Entrar, Reze Para Sair. E o filme é todo de Dennis Hopper.

30. Gremlins (Joe Dante, 1984)
Sou apaixonado pelo Joe Dante, e, inclusive, penso que seus filmes são muito mais surpreendentes e imaginativos do que o público médio imagina – o que, aliás, não é nenhuma novidade. E isso se dá não só pelo subtexto afiado do cineasta, mas sobretudo pela forma muito organizada com que bagunça um estrato social – em cena mesmo, na geografia dos espaços – e é capaz de transformá-lo em um legítimo campo de guerra, sem qualquer diversão que não seja minimamente sádica. A ser revisto, sempre.

29. Surfistas Nazistas Devem Morrer (Peter George, 1987)
Tudo é tão desconjuntado e desconfigurado que chega a ser encantador. Um cinema que se perde em si mesmo devido a imensidão das paisagens abandonadas e precárias, e ao caminhão divertidíssimo de ideias que aos poucos vão sendo sobrepostas até o terço final, que é delirante. Certamente, a ser mais visitado.

28. A Morte Pede Carona (Robert Harmon, 1986)
Um jogo de luz e sombra fundamental, onde o mal permanece sempre à espreita nos calabouços da sociedade americana. Frenético até a morte, ou até explosão. Começa como uma perseguição de carros e vai terminar em uma batalha de helicópteros. Incontornável.

27. Daunbailó (Jim Jarmusch, 1986)
Peça fundamental do cinema da Jarmusch no que diz respeito à intersecção entre personagens, consciências e espaços vazios. Uma dilatação espaço-temporal preciso, que fica cada vez melhor à medida em que encontra encontra um gesto performático muito particular proporcionado pelo trio principal de atores – Benigni, Lurie e Waits.

26. Cabra Marcado Para Morrer (Eduardo Coutinho, 1964-1984)
Não saberia dizer muito além do tanto que já se escreveu sobre o que, até hoje, é lembrado como o principal filme de Eduardo Coutinho. Acredito que haja uma influência muito primordia do contexto histórico e da feitura do filme nessa memória afetiva. De todo modo, nada disso é um demérito. Mas interessa mais perceber como ele é capaz de costurar tantas histórias e narrativas dentro de um centro documental sempre particular, extraindo das garras do Brasil um lugar de reflexão muito doloroso, porque também é muito verdadeiro.

25. Eles Não Usam Black-Tie (Leon Hirszman, 1981)
Me parece que Hirszman é um cineasta, hoje, pouco valorizado perto daquilo que merecia. Não só por ter filmado isso aqui, mas também pelas incontáveis colaborações que deixou ao cinema brasileiro. Nesse caso, toda sua capacidade cênica fica muito evidente. Uma adaptação teatral cujo eixo da câmera de Lauro Escorel entrega todo o movimento necessário para que os embates se dêem no campo do tableaux. É um filme em que as atuações são o ponto nevrálgico da coisa, e as performances centrais de Guarnieri e Xavier, juntamente com a participação especial de Milton Gonçalves, formam um conjunto quase incontornável dentro desse imaginário particular de diálogos e bordões. E com Fernanda Montenegro, claro.

24. Tim Maia (Flávio Tambellini, 1987)
Uma jóia muitas vezes esquecida pelo restante da cinefilia. Concentra na figura de Tim Maia um díptico que, ao mesmo tempo que retrata toda a graça genuína desse personagem, é capaz de demonstrar a tragédia interna que atravessava o mesmo. Filme fundamental.

23. Rumble Fish (Francis Ford Coppola, 1983)
Honestamente, acho Coppola o mais ousado cineasta de sua geração. Pelo menos, o mais inconformado. Scorsese e Spielberg vivem às margens de um sucesso de público e crítica. De Palma é o formalista renegado, o sem louros, mas é reconhecidamente o maior e melhor cineasta dentre todos da Nova Hollywood. Além de ter uma assinatura de segurança, por mais evasiva que seja. Um filme de De Palma é um filme de De Palma, sempre. Com o que deve à cada um de seus sucessores. Já Coppola é esse grande inconformado, uma espécie de insider que preferiu ser outsider. Fez O Poderoso Chefão e depois jogou o dane-se ao mundo todo. Do mesmo autor de Fundo do Coração e Tetro, filmes renegados massivamente por todo e qualquer ser-humano existente. E talvez duas das obras mais sinceras da história do cinema… Aliás, sobre o próprio cinema e sua história também. Dito isso, O Selvagem da Motocicleta é fundamental. E não há outro cineasta possível dessa geração a fazer um filme tão formalmente aplicado e desconjuntado quanto Coppola. Tão cruel e inocente, tão céu e inferno, tão Bogdanovich e Lang ao mesmo tempo. Chris Penn, Matt Dillon, Dennis Hopper, Nic Cage e Mickey Rourke. O Brasil da Copa de 70 encarando o expressionismo maneirista do autor hollywoodiano. É, meus amigos.

22. Jean-Marie Straub and Danièle Huillet at Work on a Film Based on Franz Kafka’s Amerika (Harun Farocki, 1983)
Uma representação muito fiel do trabalho dos Straub baseada na rigidez estilística de Farocki. Como um espelho colocado de realizador para realizador, em que a repetição e o gesto, mesmo nos ensaios e making offs, se revelam como a pedra mais fundamental de dois cinemas seculares.

21. Cão Branco (Samuel Fuller, 1982)
Um dos filmes seminais de Fuller, talvez o último que ele tenha conseguido produzir com o mínimo de pompa e dinheiro. Conserva os zooms incessantes, milimétricos, e sobretudo nada gratuítos. Um mestre da forma cinematográfica a depurar numa narrativa nada convencional seus maiores temas. É chegado um momento da carreira de Fuller onde não mais importava justificar seus temas e teses e tornava-se muito mais importante filmá-los como maneira de tentar encenar os dilemas próprios do cineasta. Algumas cenas possuem um impacto visual gigantesco, quase incontornável. Uma delas, é o do primeiro encontro do adestrador com o cão branco. A segunda, já no terço final, é quando Julie encontra o responsável pelo animal. Poucos cineastas fazem isso. Pouquíssimos.

20. Pauline Na Praia (Éric Rohmer, 1983)
Um jogo de tabuleiro movido por forças e paixões passageiras. Gosto muito do modo como Rohmer organiza o espaço através de um lugar macro, que é a praia do filme. A partir dali, toda espécie de encontro e desencontro entre aqueles homens e mulheres acontece. São todos figuras distintas, vítimas da espécie de paixão mais fugidia possível. Não trata-se nunca sobre amor, mas sobre ver-se como o espelho do outro, nas necessidades do outro, e entregar-se a uma vicissitude quase sem cura, oferecida por esse campo geográfico que um mestre como Rohmer é capaz de encenar como poucos.

19. Sangue Corsário (Carlos Reichenbach, 1980)
Um dos filmes mais fundamentais da minha cinefilia porque condensa aquilo que mais admiro na obra do Carlão, que é essa figura poética que se emancipa e se encontra em meio ao caos da urbanidade paulistana. Orlando Parolini, um dos gênios de nossa arte e cultura, encarnando a figura do poeta e do criador, daquele que através das frases e dos tempos atravessa todas as décadas e eras, partindo de um princípio poético único, sem que, ao mesmo tempo, deixe de ter aquele ar kischt que o cinema de Carlão emprega. A discussão final, sobre comer um kibe ou fazer arte, diz muito sobre aquilo que o cinema de Reichenbach entrega como potencial de reflexão.

18. Faça a Coisa Certa (Spike Lee, 1989)
Uma grande panela de pressão, um filme que dilata seu tempo e espaço através das pequenas crônicas de cada um dos particulares personagens de Spike Lee. É fundamental na maneira como representa a violência — e em como essa violência sempre foi um signo essencial do cinema de Lee, a lembrar de Clockers, de Summer of Sam, de Da 5 Bloods. Traduz perfeitamente em tela a essência desse conflito racial da sociedade americana no que ele tem de mais trágico e agudo como consequência. O personagem de Lee, de Torturro, de Aiello, todos esses concentrados em uma geografia muito original onde cada um é uma força extrema que carregam as tensões até o limite. Um dos mais poderosos filmes que conheço.

17. Inventários de Rapina (Aloysio Raulino, 1986)
Raulino sempre teve uma capacidade singular de focalizar suas narrativas através da troca e do contato com o outro. Nesse caso, Inventários de Rapina se fortalece ainda mais por conseguir dar vazão a esses sentimentos a partir de cortes muito definidos na mesa de montagem. É um cineasta capaz de ativar a memória e o pensamento através do som, da música, e dos movimentos de balé que sua câmera faz. Talvez um dos mais marcantes filmes de sua vasta obra.

16. Caçador de Assassinos (Michael Mann, 1986)
Poderia ficar entre Manhunter e Profissão: Ladrão para estar entre os 20 primeiros que teria certeza que a vaga estaria bem ocupada. No entanto, acredito que o diferencial aqui é um descolamento que Mann produz em relação à época que filmava para dedicar-se a um personagem de destinos melancólicos. Há a ação, vertiginosa como sempre, um intensivão policial a procura do serial killer, mas o que mais me encanta é esse toque de melodrama que depois voltaria nos seus principais filmes – Heat, Colateral, Miami Vice – cujo ponto final é a última cena, nas águas do mar de uma praia cristalina.

15. A Mulher Que Inventou o Amor (Jean Garrett, 1980)
O prisma do imperfeito. A ilusão projetada na câmera fotográfica que tampa a piroca do ator de telenovelas no quarto de Tallulah. A ilusão do pôster do homem desejado. A ilusão do espelho que reflete o casal perfeito. Depois que o espelho se quebra, a miragem termina. Voltamos a carne, porque o amor só se atinge com faca de açougueiro, estilhaçando bem lá no fundo das vísceras. Obra-prima. Monumental.

14. Crimes e Pecados (Woody Allen, 1989)
Irrevogável o lugar que isso teve na minha cinefilia como formação. Para além de todos os pormenores, não acho Allen um cineasta genial, no entanto, sua quantidade de filmes produzidos nos últimos 30 anos dá conta de criar uma atmosfera particular a muitos cineastas. Nesse caso, o presente é ver o cinismo seco de Alan Alda e Martin Landau em cena, que permite a Allen encontrar o seu melhor humor de leitor de Dostoievski, carregado de um ar sádico que de tão covarde e melancólico chega a ser fatal.

13. Honkytonk Man (Clint Eastwood, 1982)
Diante das bases mais clássicas de seu cinema — e do próprio cinema que o formou — Eastwood produz uma narrativa de conciliação familiar incontornável. É um filme que seria repetido ainda inúmeras vezes pelo cineasta, com algumas posições trocando de lugar. Grosso modo, não é um filme necessariamente muito distinto de Um Mundo Perfeito e Gran Torino, mas é grandioso na sua desbravada ao Oeste americano em busca de encontrar o amor nos olhos de um pequeno garotinho. E ainda dá conta de comprovar a melomania que é recorrente ao cineasta, cujos pontos fortes na relação entre os personagens se dá muitas vezes através desse contato melancólico ofertado pela presença das peças musicais.

12. Quando Chega a Escuridão (Kathryn Bigelow, 1987)
Bigelow tornou-se uma referência fundamental para a cinefilia da minha geração. E percebo isso por conta do reconhecimento cada vez maior que seus filmes recebem de amigos e colegas. De todo modo, há variações em seu cinema. Da Loveless até Detroit, por exemplo, muita coisa se distingue, mas algo inegável é que a criação de uma atmosfera cênica particular permanece imutável. Near Dark é um conto de amor na sociedade caipira, capturado por Bigelow com um olhar apuradíssimo para o movimento dos corpos e dos automóveis sob a luz da noite. A primeira e a última sequência tornam o filme pedra fundamental daquilo que seu cinema ainda iria gerar anos depois. E ter Bill Paxton em cena é sempre um presente. Dessa vez, dos grandes.

11. Os Aventureiros do Bairro Proibido (John Carpenter, 1986)
Carpenter tem basicamente filmes incontornáveis feitos na década de 80 – The Thing, They Live, The Fog e Prince of Darkness. Todos, ou quase todos, obras-primas (o único que talvez não me agrade tanto é The Fog, o resto brigaria facilmente para estar entre os melhores filmes já feitos). A questão é que me parece que de todos esses outros, Big Trouble in Little China talvez seja o filme mais solto que Carpenter já fez em toda sua carreira. Uma narrativa à lá Sessão da Tarde, com toda onda de misticismo, do mal do extra-campo, misturado em um filme de ação cuja premissa é basicamente colocar os operários do bairro oriental a salvar o dia. Talvez a influência do western de Hawks nunca fosse tão clara, devido ao modo em que os personagens que formam a aliança simplesmente aparecem na história de um tropo para outro, sem quaisquer contestações. Mesmo que não seja o melhor Carpenter dos 80, é possivelmente o mais ousado dentre eles.

10. Venise n’existe pas (Jean-Claude Rousseau, 1984)
A cidade não é concreto, a cidade é um rio. O rio é a água. A água é o concreto. A câmera é o tempo. A janela é o mundo. O sujeito é a eternidade. Veneza só existe na pintura. Veneza acabou. Veneza não existe mais.

9. Viver e Morrer em Los Angeles (William Friedkin, 1985)
Há outro filme de Friedkin que me interessa muito neste período, que é Parceiros na Noite (1980). Poderia facilmente estar no lugar desse aqui. Mas me parece uma questão de coerência, de gesto e de gosto. Friedkin é, para mim, o maior condutor de corpos na história do cinema de ação. E Viver e Morrer em Los Angeles desvela de forma exemplar esse gesto, que é o do choque entre um ser e outro. Não é simplesmente um cinema móvel, é sobretudo um cinema taquicárdico, que absorve a aura de LA e do seu pôr-do-sol para usá-lo como fundo de uma mise-en-scène nervosa. Os últimos 30 minutos fazem a vida valer a pena.

8. A Better Tomorrow (John Woo, 1986)
Da mesma forma que sou apaixonado por O Matador, filme de Woo que me parece estar na lista de boa parte dos votantes, sinto que A Better Tomorrow tem um toque de reconciliação quase inevitável, muito difícil de ser ignorado. Pode ser mais precoce, mas é nesse ponto que é quase inevitável apaixonar-se pelas três figuras principais do filme, especialmente Chow Yun Fat. Toda uma mimese que o ator é capaz de reproduzir e convocar, balançando sua perna quebrada, acendendo cigarro no dinheiro queimado, colocando-se à prova de todos os sacrifícios, dificilmente contornam essa experiência. É um filme iniciático de Woo, e por isso mesmo preserva sempre esse frescor, essa possibilidade de voltarmos a ele com a mesma leveza de antes.

7. Das Tripas Coração (Ana Carolina, 1982)
Ana Carolina é e sempre será o futuro. Seu cinema é inconfundível, e muitas vezes incomunicável – quer dizer, difícil de se compreender a uma primeira vista. Poucas obras do tempo da ditadura militar representam de forma tão complexa e cristalina um fascínio pela desordem, pelo esfacelamento das diretrizes e pelo abalo político. Um sonho de cinco minutos que ocorre na cabeça de um monitor, interpretado por Antônio Fagundes, mas que, ao fim, transforma-se em uma das maiores peças de tapeçaria cênica do cinema brasileiro. O arrojo com que é filmado, as imagens permanentes de Ana Carolina, as fruições em um cenário tão particular quanto o colégio interno… Tudo dá conta de um cinema de difíceis paralelismos e comparações. Viagem brutal no coração da loucura e do desejo.

6. Dublê de Corpo (Brian De Palma, 1984)
Mesmo sem estar na primeira posição, esse é possivelmente meu filme favorito entre todos os que estão nessa lista. É um misto de tudo aquilo que representa o cinema de De Palma em sua mais pura essência. Do barroco ao rococó, da putaria à luxúria, de Godard a Hitchcock, do cinema B ao mais alto escalão hollywoodiano. Um filme de farsa, feitiço e fantasia. Um cinema que existe como palimpsesto: só avança à medida em que destrói aquilo que existe anteriormente. De novo, de novo e de novo. Até que volta ao mesmo lugar, sempre.

5. O Dinheiro (Robert Bresson, 1983)
Raros filmes no mundo talvez carreguem uma sensação de arrebatamento tão formidável quanto a última obra de Robert Bresson. Dos mínimos detalhes, dos eixos de câmera, da iluminação solar silenciosa até os gestos cada vez mais calculados dos modelos cênicos de Bresson. A transformação moral que perpassa a obra desse que é um dos maiores cineastas de todos os tempos encontra aqui um encerramento definitivo para sua carreira. De certo modo, é um aparato narrativo simples, a questão do desvio moral por conta de alguns trocados, coisa que Bresson já tratou anteriormente em Pickpocket (1956). No entanto, parece que estamos em um patamar que se não é mais elevado – no sentido de maturidade – pelo menos é mais ajustado, centrado milimetricamente nestes dilemas, com um espaço de desolação incomparável que se abre a partir do encontro de dois seres no terço final do filme. E aí vem o corte brusco, duro, seco. Como se o mundo se acabasse. Como se uma das mais célebres obras da história da arte simplesmente se encerrasse a socos e pontapés, com um golpe fatal e definitivo. Bem como Bresson gostaria.

4. Nada Levarei Quando Morrer, Aqueles Que Mim Deve Cobrarei No Inferno (Miguel Rio Branco, 1981)
O resultado dos anos que Miguel Rio Branco viveu no pelourinho é uma síntese de vida bastante única. Um cinema que atravessa todas as codificações do espaço, do corpo, da luz, para chegar a um local muito sincero e difícil de alcançar. Rio Branco não está trabalhando no campo dos corpos, mas sobretudo com a aura que verte aquele espaço. Sem romance, sem mística, apenas com um real poético, muitas vezes desafiador. Sobretudo, é um filme que nos desconjunta do começo ao fim. Entre muros, escombros, ruídos e ruínas, a vida humana prevalece, na sua carne mais profunda, nos seus anseios mais verdadeiros. A luz que verte da janela, um olho espantado, o corpo em expansão. Filme para ser triturado. Cinema de purgação, pulsação, raiva.

3. O Confronto Final (Walter Hill, 1981)
Se houvesse um vencedor moral nessa lista, O Confronto Final seria ele. Mais ou menos como aquela máxima que se aplicava a Maradona: é o mais Deus entre os humanos; já que Pelé nunca foi considerado um humano. É muito difícil colocar cineastas mundanos no mesmo panteão daqueles que são incontornáveis. Godard e Sganzerla são incontornáveis. Hill é um condutor, um sádico, um maestro. Confronto Final é quase a história da falência do neoliberalismo e do militarismo em um pós-western do pântano. sobre o bom selvagem de Rousseau, sobre a agremiação inútil do serviço militar, a alienação do homem, a incapacidade do pacto, a reparação histórica do governo que aninha grupos armados para um sem-fim de inutilidades e sobre como esses grupos armados repletos de lunáticos sobrevivem ao inferno. Tudo isso num cinema ágil, áspero, barulhento, cacofônico e estridente como só Walter Hill saberia filmar. Ah, e com Keith Carradine. Obra-prima.


2) Histórias do Cinema: Todas as Histórias (Jean-Luc Godard, 1989) e 1) Brasil (Rogério Sganzerla, 1981)
Foi muito difícil escrever qualquer coisa sobre esses dois filmes. São obras dos mais incontornáveis cineastas que conheço. Em dado momento, faltam até palavras. Não trata-se de um gênero, de uma experiência, de uma análise detalhada sobre qualquer aparato cinematográfico. Brasil e a série Histórias do Cinema transcendem suas experiências a um campo em que qualquer análise majoritária se dará a partir de uma ideia de indefinido, tentar tatear significados frente a experiências que dizem menos respeito aos filmes (enquanto objetos solitários) e muito mais a projetos artísticos muito bem conduzidos. São dois dos cineastas mais radicais que conhecemos, duas escolas que nunca pararam de se recriar e reinventar. E sobretudo, há muito o que se dizer acerca de uma identidade nacional — no caso de Sganzerla, dos tótens de nossa cultura, dessas figuras místicas incontornáveis —, no caso de Godard, de uma História do cinema que suas abstrações permitem que seja borrada, manchada, colocada sob o viés de uma lupa inconfundível, remanescente de uma mistura que acarreta sempre em novos significados. Essas duas obras não são necessariamente filmes, são objetos voadores. Como disse, não é possível colocá-las lado a lado com os “outros”. Pois são mais que os outros. São o além.