60 filmes de 2022

Esse ano quis fazer uma lista diferente. Não é um simples ranqueamento, como nos anos anteriores (ver aqui as de 2020 e 2021) é uma divisão em 10 partes de 60 filmes que me tocaram ao longo dos últimos 12 meses. Algumas ressalvas são importantes, a primeira delas é que definitivamente não fui capaz de acompanhar o circuito dos lançamentos e nem mesmo o circuito da pirataria. Com isso, quero dizer que é possível que não tenha nada de muito “novo” por aqui, de muito experimental, de muito inovador. Um outro fator importante é que, se 2022 já foi um tanto difícil no sentido de lidar com os filmes, 2021 foi mais ainda, o que justifica algumas presenças aqui que deveriam estar na lista do ano pasado.

Sem mais delongas, separei os filmes, sem ordem de preferência, dentro de 10 subdivisões. São sessões experimentais, imaginadas por aquilo que as obras propõe enquanto desafio, estética e aventura. As regras seguem as mesmas, filmes vistos ao longo do ano que tenham sido exibidas (lançamento comercial, festivais, mostras, curadorias) nos últimos 3 anos. No final, sem nenhuma certeza, um ranqueamento dos 10 favoritos. Espero que gostem.

Ah, e os curtas. Sempre o mais importante pra mim. Primeiro os curtas.

20 CURTAS BRASILEIROS

O NASCIMENTO DE HELENA (RODRIGO DE ALMEIDA, 2021)
Meu curta brasileiro favorito da última safra. Penso que ele recupera uma adesão estética radical que se vincula a todos os trabalhos da Surto e Deslumbramento. Retém essas extrapolações do campo da imagem com um passeio soturno pela camada sonora. É absurdamente humano na forma como seu personagem retrata as vivências através dos descaminhos da noite, ao mesmo tempo impondo um mistério e um senso de deslocamento social muito evidente. A reviravolta do filme é de um frescor abissal. Esse lugar esquecido entre o riso sem jeito e a catarse da experimentação

SOLMATALUA (RODRIGO RIBEIRO-ANDRADE, 2022)
Rodrigo Ribeiro continua sua cine-escritura através de um cinema que lida ao mesmo tempo com o lastro da história e com o legado dos seus. É um filme que se imbrica brutalmente através das imagens, que parece ser feito diretamente na pele do cinema, buscando os pontos de encontro e fricções entre a matéria por meio de uma montagem muito díspar. É um filme que se persegue e se encontra o tempo inteiro. Que entende que fala de vozes coletivas a partir do momento em que fala das trajetórias do tempo.

QUAL É A GRANDEZA (MARCUS CURVELO E MURILO SAMPAIO, 2022)
Acho que esse filme dá uma curva abrupta na carreira de Curvelo (em conjunto com Sampaio) que é incontornável. Volta umas três casas pra trás, pra avançar um milhão na frente. É um dos melhores filmes do futuro. Chega através dos gestos e trocas mínimas a uma das ideias de cena mais complexas que o cinema brasileiro nos apresentou recentemente. Ao mesmo tempo que é extremamente fresco é extremamente clássico, trabalha numa ideia de memória do cinema e do fracasso unilateral, para a qual vamos sempre retornar. Gosto cada vez mais da obra dele.

GAROTOS INGLESES (MARCUS CURVELO, 2022)
Menos que Qual É A Grandeza, o que admiro em Garotos Ingleses é justamente o gesto de extensão entre presente, passado e futuro. Curvelo e Sampaio procuram de maneiras muito distintas e escrachadas a busca por respostas que dificilmente virão. No entanto, a certeza desse indefinido os interessa tão mais, que é justamente o que proporciona que aquilo que fazem para buscar as respostas torne-se palco e estrutura para a mise-en-scène.

INFANTARIA (LAÍS ARAÚJO, 2022)
Fico muito feliz com o holofote que Infantaria tem recebido após a seleção pra Generation da Berlinale. No geral, penso que é um dos filmes mais singelos da safra recente, numa estrutura narrativa bastante simples mas que se aproxima com facilidade das violências simbólicas do cotidiano. Tem um elemento de mistério muito inteligente, que vai se aliando com força através da relação que se estabelece entre as três mulheres/garotas. É um núcleo bastante forte que se condensa em relações pequenas mas essenciais como a maternidade, o amadurecimento e a violência. Vale cada um dos louros que tem levado.

BIG BANG (CARLOS SEGUNDO, 2022)
Já curtia Sideral (do ano passado) em algum nível. Mas acho que o cinema de Carlos Segundo encontrou um ponto muito interessante entre o desejo de se enquadrar nesse mercado gringo e uma estrutura narrativa clássica que funciona muito por conta de seu protagonista e do modo com que articula cada uma das situações voltadas para ele. A atuação central é embasbacante.

A MEMÓRIA SITIADA DA NOITE (EWERTON BELICO, 2021)
Um filme que atravessa as heranças noturnas e experimentais do cinema brasileiro com um primor absurdo. É uma matéria densa e cinzenta, de contrastes sonoros e imagéticos, à procura de um caminho que não se sabe muito bem qual é.

PROMESSA DE UM AMOR SELVAGEM (DAVI MELLO, 2022)
É um filme imperfeito que ainda assim me interessa muito. Têm uma primeira parte bastante burocrática, mas inventa bastante nesse lugar místico do “nada acontece” cotidiano, das baladas LGBTQIAP+ e dessa vivência trocada entre uma comunidade tida à margem. Depois o filme se quebra no meio, num golpe de sorte, que é uma das ideias mais interessantes no cinema brasileiro recente. Queria ter visto com mais afinco essa intencionalidade, mas ainda assim tem um valor bem especial, penso.

AS LAVADEIRAS DO RIO ACARAÚ TRANSFORMAM A EMBARCAÇÃO EM NAVE DE CONDUÇÃO (KULUMYM-AÇU, 2022)
A primeira vez que vi esse filme fiquei chocado com uma característica muito particular que tem a ver com a construção de um cinema que é voltado à sensação. Tem todo um misticismo nessa matéria ao redor do fogo, nesses gestos e rituais, e numa crença muito forte do movimento, da sublimação e da transformação. São imagens que também ajudam a abrir os olhos de quem as vê.

CLAUDIO (CALEBE LOPES, 2022)
Eu nunca poderia deixar de lado qualquer obra que remonte com tanta precisão elementos que são tão caros à cinefilia que me formou. O que tem de mais legal nessa aventura que é Claudio é a capacidade de coordenação dos movimentos de câmera, de noção estética do que se é possível reproduzir, reestruturar e emoldurar para uma realidade como a do Brasil.

XAVIER E MIGUEL (RICKY MASTRO, 2022)
Acho que é um dos filmes mais singelos que vi esse ano, num sentido puramente particular de que existe uma relação muito humana e simples entre esses dois sujeitos. Não é nada levado a algum grande limite que vá além do desejo, do misterio e da intenção que existe entre os corpos que se desejam, mas é um presente que ele seja tão manual e feito de maneira muito fresca.

SERRÃO (MARCELO LIN, 2022)
Serrão ganhou diversos prêmios e atenção em 2022 e acho que isso se deve muito a uma capacidade muito interessante que Marcelo Lin tem de valorizar os seus personagens em cena. Não apenas são muito bem enquadrados como narrativamente se cercam e aproximam com uma delicadeza muito diferenciada. A montagem de Marco Antônio Pereira faz jus a essa relação e coloca o film e num não-lugar bastante irreverente.

PRATA (LUCAS MELO, 2021) e CENTELHA (RENATO VALLONE, 2021)
Dois filmaços. Sobre um cinema coletivo e sobre um lastro de memória. Muito curioso prever a origem desses dois filmes e saber que eles descambam numa ideia muito material de cinema, de uma realização estética profunda e que parte sempre adiante naquilo que acredita. Um retoma uma ideia experimental e selvagem do legado do cinema brasileiro, outro remonta a tradição do contemporâneo ao melhor estilo, esgarçando isso com um carinho deslumbrante pelas imagens.

MUTIRÃO: O FILME (LINCOLN PÉRICLES, 2022)
Dediquei alguns anos da minha vida a pesquisar mais a fundo os filmes do Lincoln Péricles. Escrevi um trabalho de conclusão de curso sobre esse filme e penso que ainda sobram mais algumas palavras pra tentar disseminar as ideias que o atravessam. Lincoln, que por tantas vezes utilizou a narração como um elemento incidente de seu cinema — uma camada negativa, que quebra a imagem, a desloca, a põe em xeque — agora também escolhe colocar em xeque o que há de mais curioso no campo sonoro. A participação de uma criança no campo criativo de seu filme o atira brutalmente para um quase jogo de amarelinha entre a histórica construção das comunidades habitacionais e a própria construção artística de uma obra de mentira. Cada vez mais radical e cada vez mais clássico, meu cineasta brasileiro favorito.

5 OBRAS-PRIMAS
POETA (DAREZHAN OMIRBAYEV, 2022)
THE FIRE WITHIN: A REQUIEM FOR KATIA AND MAURICE KRAFFT (WERNER HERZOG, 2022)
MEMÓRIA (APICHATPONG WEERASETHAKUL, 2021)
À L’ABORDAGE (GUILLAUME BRAC, 2021)
ALAN (DIEGO E DANIEL LISBOA, 2022)

Foram os filmes que mais me tocaram ao longo do ano. É bem verdade que pelo menos dois deles já estão circulando desde a safra do ano passado. O filme de Brac só consegui ver em 2022 mesmo, já o novo de Apichatpong resolvi esperar para ver em tela e grande — e como valeu a pena. Memória me parece o retorno de Joe à sua melhor forma, às minúcias da investigação da alma, da morte, do espírito e, sobretudo, da forma cinematográfica. Um animismo que se instaura e se faz presente através da pele dos filmes e de seus contornos. E de um radicalismo central e cuidadoso, a melhor coisa que ele faz desde Blue (2018). Poeta e Alan, por sua vez, foram dois dos filmes que assisti na cobertura do último olhar de cinema. Em dois escopos muito distintos, formam experiências singulares desse ano — talvez essencialmente meus dois filmes favoritos. Alan, por aquilo que revira da alma, dos espelhos, dos dispositivos, e subitamente por conseguir ser metonímia de um estado de mundo tão cruel internalizado na pele de um personagem brilhante. Poeta, não apenas pelo rigor e cuidado formal, mas pelas batalhas que é capaz de travar por meio do silêncio, dos deslocamentos e das brincadeiras textuais. É um filme extremamente triste e melancólico na mesma medida que sedimenta memórias de um passado longínquo, de uma arte em crise, de raízes e lembranças que fazem parte dos ossos e da carne de seus sujeitos. Por fim, The Fire Within. Em um ano em que grandes mestre como Apichatpong, Herzog e Cronenberg lançaram novos filmes, é de se esperar que as expectativas maiores recaiam sob seus ombros. No entanto, o movimento que mais me agrada destes três cineastas (tão distintos e tão similares) é uma escolha pelo mínimo, pela depuração da forma através dos menores detalhes, da contingência e, sobretudo, da potencialização de suas estéticas e de seus movimentos através de recursos muito (muito!) simples. É como dizem por aí, os melhores são aqueles que fazem o difícil parecer fácil. Talvez seja loucura minha, mas penso que Herzog tenha levado uma vida toda para alcançar algo do potencial de The Fire Within, no sentido dramatúrgico e estético. É um filme que se faz na mesma medida em que é preciso que um cineasta tão cuidadoso como Herzog seja capaz de dar a voz aos que se foram. As imagens de Katia e Maurice Kraft formam um conglomerado de convite aos olhos, mas sua dimensão trágica, emulada pela voz do cineasta, se refaz e reforma a cada tropo, atingindo o ápice final. É preciso voltar sempre para estes filmes aqui.

5 BEIJOS DE SAUDADE
OS PRIMEIROS SOLDADOS (RODRIGO OLIVEIRA, 2021)
THE FABELMANS (STEVEN SPIELBERG, 2022)
NOITES DE PARIS (MIKHÄEL HERS, 2022)
THE NOVELIST FILM (HONG SANG-SOO, 2022)
BENEDICTION (TERENCE DAVIES, 2021)

São filmes que, de um modo ou outro, me colocaram em um estado melancólico nesse último ano. Filmes cuja troca entre os atores é essencial para o andamento das narrativas — em que, na verdade, muitas vezes, a narrativa se trata de uma extrapolação do sentimento dos personagens através dessas trocas. Dois mestres (SangSoo e Terence Davies) permanecem fazendo de suas obras uma bacia de lirismo. Arrisco a dizer que talvez tenham feito seus melhores filmes nos últimos tempos. Noites de Paris não me parece, necessariamente, guardar a mesma força selvagem que os últimos filmes de Hers, mas ainda assim presenteia uma visão melancólica, meio boêmia, dessas noites de paris à olhos muito nus. É de uma concentração e de uma cristalização absoluta, e isso no fim vale muito a pena (além, claro, da presença de Charlotte Gainsbourg). Já Os Primeiros Soldados e The Fablemans estão em dois polos opostos que se atraem de modo curioso. O filme de Rodrigo é celebrado pelo seu grau de execução e de frescor, pela aposta em um cinema narrativo considerado “feliz” mas que é muito consciente do campo onírico e poético que oferece à plateia na medida em que modula uma narrativa muito particular e singelo. Já o novo Spielberg é uma ode do cinemão para o cinemão, mas recupera um sentido às vezes esquecido (e muito valioso) na obra do americano, que é o ímpeto pelo sonho. Talvez não tenhamos prestado a devida atenção ao valor dessa máxima, e ela vale muito nas mãos de um cineasta que sabe potencializar e maximizar essas frentes.

5 DESCIDAS AO INFERNO
ALONE (JOHN HYAMS, 2020)
BOILING POINT (PHILIP BARANTINI, 2021)
SPEEDFREAKS: PSICOPATA CAMARADA (RAFAEL PORTO, 2021)
NOITES BRUTAIS (ZACH CREGGER, 2022)
O TELEFONE PRETO (SCOTT DERRICKSON, 2022)

Talvez o compilado de filmes mais duvidáveis de toda essa lista, mas com algumas coisas que me interessam muito. A esse ponto, talvez não seja nenhum segredo meu fascínio por filmes B de porradaria, independente da origem ou da moral que os atravessem. Acho que o cinema é possivelmente a arte que melhor explora esse conglomerado de corpos atingindo o torpor de seus nervos. Não são filmes que necessariamente trazem isso à tona, mas que carregam em si uma viagem pelo dito mundo cão. Noites Brutais e Telefone Preto são dois dos melhores filmes de horror da temporada, e curiosamente descortinam um sentido metafórico muito caro ao cinema norte-americano, de que os fantasmas e os escombros históricos dessa população sempre estiveram escondido nos seus porões. Por debaixo daquilo que ninguém vê, se apresenta o verdadeiro horror, trepidado e escoltado da luz brilhante dos dias, mas ainda a espreita para ameaçar cada um de seus samaritanos. Curiosamente, também, dois filmes muito bem filmados, Noites Brutais ainda mais que o de Scott Derrickson. O arco do cineasta abusador é um presente. Já Alone é a epítome de um dos cineastas contemporâneos que mais me interessam, uma espécie de mise-en-scène seca, aguda, e muito rápida, capaz de tanto enquadrar como emoldurar a ação através de seus ápices. Boilling Point entrou na lista nos 45 do segundo tempo. Não acho nem de longe tão bom, mas é mais ou menos o que seria se os Irmãos Safdie fizessem um filme de plano sequência em um restaurante (claro, o resultado não é necessariamente tão sedutor quanto essa premissa, mas a performance central é de fato sublime). Por fim, o documentário de SpeedFreaks. Antes de mais nada preciso dizer que talvez esse filme tenha um apelo mais significativo para fãs da cultura hip-hop em si, mas determinadas viagens ao coração de almas tão criativas, confrontadoras e atormentadas me interessam mais do que filmes calculados de temas genéricos. Foi como reencontrar um dos músicos que mais educou meu pensamento na adolescência.

5 IMAGENS PARA AMANHÃ
MARTE UM (GABRIEL MARTINS, 2022)
NOPE (JORDAN PEELE, 2022)
AMBULANCE (MICHAEL BAY, 2022)
RRR (S. S. RAJAMOULI, 2022)
CRIMES DO FUTURO (DAVID CRONENBERG, 2022)

Parece inevitável no ano de 2022 imaginar filmes como Nope e Marte Um colocados juntos. O mais curioso é que nunca imaginei gostar tanto de um filme de Jordan Peele. Me perdoem os amantes, mas eu tenho algumas dificuldades com seu cinema. Principalmente com seu último filme (Us). No entanto, Nope me parece o chute mais certeiro que poderia ter sido dado. É, sobretudo, um filme divertido, esquisito e bastante criativo. Não é necessariamente sobre imaginar um mundo melhor, mas sobre conseguir compor uma narrativa onde cada um daqueles truques que ele sempre punha em cena desta vez atinja um conceito muito mais desafiador. Toda ideia daquela noite azul, de uma vigilância estranha, de uma domesticação impossível e vingativa, tomada forma num filme de ação alucinante, feito a luz do dia… Enfim. Fez a carreira toda do cara dar a volta pra mim. Daqui pra frente, vejo a coisa com outros olhos. Já Marte Um é meio que o oposto desse sentido, pois é um cineasta que admiro bastante modulando uma trama que ele domina com maestria. Mas agora me parece que existe um passo além, se há filmes nessa junção que possam ser considerados de ação, faço a defesa que mais me parece esquisita: Marte Um, filme de ação. Não uma ação visível, mas de tramas que, pouco a pouco, ganham uma energia muito selvagem através de sua calmaria calculada. O menino que não sabemos se vai ou não virar no mundo da bola; a personagem de Rejane Faria que carrega um confronto interno misterioso, toda a trama de especulação no condomínio do pai de família, a guerra silenciosa das duas garotas que se amam. A graça de Marte Um reside justamente nesse cineasta que modula tensões por meio das destensões, e que, curiosamente, igual o filme de Peele, aponta os olhos para o céu. Enquanto um encontra o sonho da redenção, o outro encontra a história do cinema. Jeitos diferentes de produzir imagens cristalizadas. Nessa mesma onda, Ambulância, do Michael Bay, me parece um dos grandes filmes americanos do ano. Há muito que esse é um cineasta amaldiçoado pelas massas mas que permanece um grande esteta dos corpos. Daquele plano quase mimético de Will Smith por detrás dos lençóis brancos em Bad Boys até os planos dos brutamontes em Sem Dor, Sem Ganho, é um dos cineastas que mais flerta com essa ideia burguesa dos sonhos e dos conflitos sociais por meio de uma violência popular que parece passar muito desapercebida. É no excesso, enfim, que encontramos as melhores surpresas de Bay. Com Ambulância, não é diferente. Por fim: um filme de amor, RRR, das mais inusitadas epopeias do cinema recente. E Crimes do Futuro, filme para o qual já dediquei um texto mais longo aqui no blog e que, repito, acho que ainda pouco foi falado. É sobre se descobrir filmando, sobre a crença na luz na idade das trevas. Sobre imagens para o amanhã.

5 SONHOS DE MEMÓRIA
SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS (FÁBIO LEAL, 2022)
DECISION TO LEAVE (PARK CHAN-WOOK, 2022)
RODA DA FORTUNA (RYUSUKE HAMAGUCHI, 2021)
ARMAGEDDON TIME (JAMES GRAY, 2022)
ERA UMA VEZ UM GÊNIO (GEORGE MILLER, 2022)

Cinema é magia. Esses são filmes que levam ao pé da letra essa ideia e que conseguem, de diferentes modos, esgarçar seus limites através de cada um dos sentidos que seus cineastas carregam. Sem muitos adendos, são filmes que carregam em seu âmago uma vontade imensa de acreditar em determinadas ideias. Seguindo Todos os Protocolos leva o cinema de Fábio Leal para outro nível, ainda que mantenha o pé na criatividade que o levou até lá. Decision to Leave acredita no detetivesco de um modo esquisito, estranho, mas se calca nessas deformidades para encontrar um caminho de cinema B que lhe parece tão caro. O filme de Hamaguchi é um sonho, acho que sobre isso não é preciso falar mais nada. Fé e fé na poesia. E, por fim, meus favoritos. Armageddon Time e Era Uma Vez Um Gênio. O primeiro, um filme doce, de uma estrutura clássica que Gray carregou a carreira toda, mas agora modulada num tempo áureo, dourado, pra toda família (mesmo que, ao que parece, muitos ainda não tenham entendido isso). Já o filme de Miller remonta com alegria seus desejos mais profundos, coloridos e sobretudo mitológicos. É um cineasta que acredita profundamente em uma ideia literária, narrativa, que cultiva o subtexto dos filmes. Essa viagem entre Idris Elba e Tilda Swinton é uma das coisas mais curiosas que pude ver. Claro que tem ressalvas, tem certas problemáticas, mas de todo modo se coloca tão a disposição da capacidade de imaginar que praticamente contorna todas essas coisas.

5 MORTES DIGITAIS
THE BATMAN (MATT REEVES, 2022)
AFTERSUN (CHARLOTTE WELLS, 2022)
TOP GUN: MAVERICK (JOSEPH KOSINSKI, 2022)
REWIND & PLAY (ALAIN GOMIS, 2022)
X (TI WEST, 2022)

Alguns dos filmes que mais gostei nesse ano estão aqui. Rewind & Play é uma guerra de montagem das maiores que existem, um personagem que briga o tempo todo com seu enquadramento, com seu enfoque e com as versões de si. Uma guerra televisiva posta em tela e muito bem manejada por Gomis. X é a verve do radicalismo no cinema mainstream americano. Desde Tony Scott não via alguém desafiar de modo tão desbravado esse modus operandi da indústria. Repensar a imagem não necessariamente passa por um filme desses, mas os limites que podemos impor nesse campo industrial certamente são esgarçados por um maluco como Ti West. Top Gun Maverick, por sua vez, remonta com louvor um classicismo que o próprio Tony Scott impunha no primeiro filme, mas dessa vez acena com uma clareza cênica e solar louvável para essa passagem de tempo tão lúgubre para com os grandes astros. Se em 2022 vimos o apodrecer das peles do outrora gangster de Cronenberg (Viggo Mortensen), ele também trouxe um frescor e uma poesia pras rugas plastificadas de Tom Cruise. Cada dia mais velho e cada dia mais bonito. Já The Batman e Aftersun são dois exemplos de filmes no meio do caminho. Não são obras-primas, mas são exemplos excelentes de filmes que manejam com louvor uma estética fora do tradicional para meios populares (o mercado de super-heróis e o mercado indie festival). Se por um lado, é uma alegria ver um filme de boneco feito com clareza, refino, com planos estáticos e, sobretudo, com uma habilidade absurda de não se levar a sério (The Batman é o grande filme de Scooby Doo dos últimos anos); por outro lado encanta receber esse filme de Wells, que apesar dos vários tiques de cinema independente, sustenta muito bem nas atuações centrais e no terço final uma ideia muito dura e profunda de finitude. Não são dois filmaços, mas são ótimas visitas, ótimas hipóteses (pelo menos, até que o starsystem os torne mão de obra pasteurizada).

5 PASSOS EM FALSO
BRONX (OLIVIER MARCHAL, 2020)
GERAIS DA PEDRA (DIEGO ZANOTTI, GABRIEL DE OLIVEIRA E PAULO SILVA, 2022)
THE KID DETECTIVE (EVAN MORGAN, 2020)
GLASS ONION (RIAN JOHNSON, 2022)
COM AMOR E FÚRIA (CLAIRE DENIS, 2022)

Passos em falsos são caminhos que se abrem, são opões que o cinema produz a partir do que os filmes encaminham. Nesse caso, talvez goste mais de alguns dessa lista justamente pela capacidade em abreviar e reproduzir essas lacunas. Com Amor e Fúria, um dos mais recentes filmes da Denis, é uma grande lacuna que se perde e completa a medida em que avança. Um filme de amores imaginários e de traições palpáveis. Bronx e The Kid Detective também são filmes que apropriam-se de gêneros distintos (o policial e o noir) para desbravá-los de formas contrárias: um em direção ao mundo cão, outro em direção a um cinema quase de comédia. Glass Onion, apesar de muito inferior ao primeiro filme da série, ainda guarda um frescor detetivesco que Rian Johnson já procura e coteja desde os primeiros trabalhos. E conserva nesse jogo de gato e rato uma atenção afetada aos atores que é mágica. O detetive de Craig é um dos melhores personagens que o mainstream americano gerou recentemente. Por fim, Gerais da Pedra, que, no interior de Minas Gerais desbrava os caminhos do lastro e da memória do legado de Guimarães Rosa. Pensando bem, em muitos dos casos, os passos são mais certeiros que em falso, acertam mais que erram, mas são filmes que valem pelo que oferecem de mistério aos espectadores.

5 PASSEIOS SELVAGENS
SOY LIBRE (LAURE PORTIER, 2021)
EMILY THE CRIMINAL (JOHN PATTON FORD, 2022)
DARK GLASSES (DARIO ARGENTO, 2022)
ATÉ OS OSSOS (LUCA GUADAGNINO, 2022)
DAY SHIFT (J. J. PERRY, 2022)

O filme de Portier é de um personagem incontornável e incontrolável, e o poder dos registros é fascinante. O de Guadagnino remonta a road trip do interior americano (influências bem claras do Near Dark de Bigelow) e o atualiza para seu cinema de complexidades geracionais e amores impossíveis. O novo Argento é possivelmente o melhor filme que ele fez em 20 anos, solar, magnânimo e catártico como os cinema que, nos melhores tempos, ele sempre ofereceu. Emily The Crminal é uma das melhores surpresas indies que recebi nesse ano. Metáfora desse capitalismo tardio fantasiado em filme de assalto que leva quase todos seus personagens à falência. E, por fim… o filme mais zoado que eu jamais coloquei nessa lista, Day Shift. Mas, sinceramente, nem quero explicar. Dei play e… Snopp Dogg decapitando vampiros com um baseadão na boca. Dane-se tudo.

5 JOGOS DE MEMÓRIA
LUTAR, LUTAR, LUTAR (SÉRGIO BORGES E HELVÉCIO MARINS, 2021)
THE BANSHEES OF INISHERIN (MARTIN MCDONAGH, 2022)
STARS AT NOON (CLAIRE DENIS, 2022)
IL BUCO (MICHELANGELO FRAMMARTTINO, 2021)
THE ETERNAL DAUGHTER (JOANNA HOGG, 2022)

Cinco filmes onde o tempo importa tão ou quase mais do que as palavras. Mas onde as palavras também importam. Il Buco poderia muito bem ser considerada mais uma obra-prima de Frammarttino. Stars At Noon é um modulador de tensões, um dos filmes mais selvagens que Denis fez em algum tempo, talvez desde Bastardos. Lutar, Lutar, Lutar, o filme do Galo, recupera uma memória histórica que me é muito cara, no sentido de espelhar essa alegoria também para o meu time, mas não apenas isso. É um filme poderoso nesse retrato de uma ideia do futebol como pensamento social, como ferramenta de intervenção e de ação, como traço genético cultural. The Banshees of Inisherin, novo do McDonagh (cineasta que tenho muitas dificuldades, em geral), me agrada bastante justamente pelo traço teatral que carrega. É um texto que outrora fora dos palcos e, agora, encaranado na tela do cinema, recupera um tempo muito essencial para a cena. Uma provocação mútua que povoa o filme pouco a pouco, e que através dos inusitados silêncios e das atitudes improváveis celebra o melhor que a dupla Brendan Gleeson e Collin Farrell têm a oferecer.

Por fim, uma lista final. Sem qualquer certeza.

1. THE FIRE WITHIN: A REQUIEM FOR KATIA AND MAURICE KRAFFT (WERNER HERZOG, 2022)
2. ALAN (DIEGO E DANIEL LISBOA, 2022)
3. POETA (DAREZHAN OMIRBAYEV, 2022)
4. CRIMES DO FUTURO (DAVID CRONENBERG, 2022)
5. NOPE (JORDAN PEELE, 2022)
6. REWIND & PLAY (ALAIN GOMIS, 2022)
7. À L’ABORDAGE (GUILLAUME BRAC, 2021)
8. SOY LIBRE (LAURE PORTIER, 2021)
9. AMBULANCE (MICHAEL BAY, 2022)
10. TOP GUN: MAVERICK (JOSEPH KOSINSKI, 2022)

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