A câmera começa numa pelada de futebol, mas logo vai para uma colina. De repente chega o mar, as ondas, os peixes. Então surgem os corpos dos pescadores e as escadarias intermináveis. É tudo muito concreto, mas também muito abstrato. O olho encontra o horizonte, mas nem sempre é capaz de perfurá-lo. Aquilo que nos é oferecido fica sempre pela metade, interrompido pelos teleféricos e pelas roupas no varal.
Valparaíso é um labirinto estranho, de arestas infinitas: sobe e desce, entra e sai, vai e volta. E tudo, definitivamente tudo, é banhado pelo sol — ou pela sombra retumbante que ele oferece. Trata-se de uma cidade de cubículos e atalhos; arestas suspensas pela metade, cuja arquitetura triangular, quase torta, obriga a todos a se esgueirar em contingentes maciços de concreto. Lá, encontra-se um povo sem redenção, mas também sem qualquer lampejo de culpa ou desafeto. As imagens que se tem de Valparaíso são selvagens, e guardam em si uma intensidade que se estabelece a partir do mágico e do misterioso: são reflexos intermitentes, estruturas indefinidas, vãos enormes, e muita, muita gente.
Reza a lenda que o filme de Joris Ivens, que leva o nome de …A Valparaíso (1963) e é baseado num texto escrito por Chris Marker, foi conduzido também por boa parte de seus alunos, na ocasião em que foi ao Chile ministrar aulas de cinema. Essa experiência, cuja magnitude ainda é um pouco incompleta, flerta com o passado histórico que assola a cidadela. O texto de Marker, sempre gracioso e irônico, oferece algumas pistas, mas é o espanto das imagens, muito pouco calculadas, que contemplam as contradições que aquele morro, cercado por quarenta e duas vilas distintas, oferece. Elas apresentam aquilo que sua arquitetura nada engenhosa melhor traduz, as contradições visual. Tudo em Valparaíso é sobre luz e sombra. Sonhos, memórias, lutas e conflitos guardados em um contraste abrasivo, cuja arte do cinema é capaz de capturar com um pouco mais de duração que as outras. O arroubo em …A Valparaíso é justamente aquilo que revela aos olhos, muito mais que as impressões textuais e contradições sonoras. Cada corpo é também uma mancha, uma passagem, um desvio. Cada sujeito abre um caminho e oferece outro. Ou o povo desce para buscar a água dos dias, ou ela sobe por guindastes e teleféricos descontinuados. Tudo ferve, tudo ocorre e não ocorre. Tudo se respira. Especialmente as crianças.
Em 1991, o fotógrafo Sérgio Larraín, que durante anos estudou a meditação do tempo e dos espaços através da câmera, lança um livro com o mesmo nome da cidade portuária. As imagens do chileno, em geral deslumbrantes, fotografadas durante as décadas de 1950 e 1970, reconduzem o olhar dos espectadores para estas manchas declaradas; ajudam a estabelecer no âmago de quem as vê um tempo indefinido, instável, e, sobretudo, uma calma abrasivamente furiosa. É como se cada personagem daquelas fotos guardasse um mistério, um esconderijo que está sempre disposto na próxima esquina. Afinal, é impossível ver o filme de Ivens sem retornar estes registros, pois são eles que melhor nos aproximam de uma poética sem moralismos, mas que, em seu centro, procura justamente a captura de uma energia, uma atmosfera tênue que explode, expande, alcança e colide através dos pequenos gestos.
O filme de Joris Ivens, em seus melhores momentos, dá conta de chamar a atenção para esses mesmos procedimentos. Mas é uma visita que, por mais que tente sempre o acerto de contas com a História, encanta sempre e muito mais pelo olhar atento a cada dobra daquela arquitetura volumosa, a cada uma das crianças que passa para brincar na escuridão das brechas ou para trazer o peixe fresco que vem do mar de volta para as casas. Daí reside uma força obscura, incalculável, cuja feitura de um filme é incapaz de lidar em sua totalidade. Muito mais que o lastro histórico que abarca Valparaíso, é sua gente que é encantadora. Os procedimentos cotidianos, os labirintos pelos quais se esgueiram, as rotinas portuárias que servem como declaração de classe e de margem de cada um que vive ali. É precioso e desumano, mas sobretudo é complexo. Um espelho cujo reflexo devolve a imagem do próprio espelho. Uma contradição. É onde surge a poesia.
Nunca fui a Valparaíso. Mas sei desde muito que seu mundo é um universo circular, incompleto, e cuja beleza provém de um magnetismo pujante, forjado pelo brilho do sol no rosto de cada um de seus moradores. O filme de Ivens também possui essa crença, e é por essa graça que sua visita é sempre radiante. Porque, ao mesmo tempo que calcula as diferenças históricas e as disputas sangrentas, nunca esquece de olhar para cima, para as nuvens e para o sol. É onde a verdade existe, na agitação das crianças, nos braços que levam o peixe para casa, nas senhoras que saem do topo do morro para estender as roupas. Sem belezas fáceis, mas com uma capacidade de captura deslumbrante de um mundo que não descansa. De um abismo que as luzes e as sombras ofertam.
Por Rubens Fabricio Anzolin