Quem é?

Ao contrário de boa parte dos filmes contemporâneos, Batem à porta traz no título um sujeito indefinido. O verbo, conjugado na primeira pessoa do plural, fica evidente, mas o agente de sua ação permanece em segredo. Afinal de contas, quem bate à porta? Uma primeira leitura, mais óbvia, seria aquela que a trama do próprio filme desenha, e que, como estratégia de marketing, facilitaria a adesão ao título da mais recente obra de M. Night Shyamalan. Leonard (Dave Bautista), Redmond (Rupert Grint), Adriane (Abby Quinn) e Sabrina (Nikki Amuka-Bird) batem à porta do casal de pais Eric (Jonathan Groff) e Andrew (Ben Aldridge). Mas será mesmo que são esses os sujeitos ao qual o título do filme de Shyamalan se refere? Pensemos.

Em um contexto macro, é preciso cotejar algumas coisas antes de se chegar ao corpo de uma hipótese. Um primeiro componente a se identificar é justamente um decoro que atravessa o verbo “bater”. Reparem que trata-se não de um gesto de invadir ou adentrar um recinto onde não se é convidado. Antes de tudo, o “to knock” é um gesto de cordialidade, um pedir licença para estar em determinado lugar. Os quatro mensageiros — Leonard, Redmond, Adriane e Sabrina —, portanto, não poderiam ser aqueles a quem o título se refere, pois estes, por mais que, de fato, batam à porta, não reproduzem um eco que o próprio verbo oferece, o da anuência. Nenhum dos quatro personagens possui permissão para estar na casa de Andrew e Eric, fato esse que os qualifica como invasores, e nunca como convidados. No entanto, se o sujeito do “batem à porta” não diz respeito ao quarteto principal do filme, é possível que ele faça alusão não a uma ação pessoal, mas sim a uma ação coletiva, a um chamado, uma mensagem. Ou seja, algo bate à porta. Não necessariamente alguém. 

Não seria a primeira vez que um filme de M. Night Shyamalan orbita ao redor de uma convocação. Volta e meia, as obras do cineasta tem como premissa a cristalização de uma missão/provação para algum de seus personagens. No caso de Batem à porta, tal chaga é relegada à família de Andrew, Eric e Wen; entretanto, ela já foi tomada de empréstimo por tantos outros seres na obra do cineasta. Em Dama na água (2005), Cleveland (Paul Giamatti) obteve a missão de salvar Story (Bryce Dallas Howard), a criatura mágica que surgiu em seu quintal; os irmãos de Sinais (2002) ficaram na incumbência de defender o mundo — e suas “famílias” — da ameaça alienígena; Elliot (Mark Wahlberg) em Fim dos tempos (2008) tinha o compromisso de cessar a ameaça invisível que assolava a humanidade. Os exemplos são múltiplos, mas se reproduzem com franqueza diante de uma produção cujo mote é sempre atravessado por um retorno ao seu âmago e aos temas centrais que o circunda. É a velha chaga de que “todo o grande cineasta faz sempre o mesmo filme, com pequenas mudanças entre eles”. Uma vida humana é curta para mais do que duas ou três boas idéias fixas, diria João Bénard da Costa ao escrever sobre Fuga de Los Angeles (John Carpenter, 1996), um dos maiores filmes do mundo. Mas bem, retornemos ao ponto.

Se falamos que algo bate à porta e não necessariamente alguém, é preciso esquadrinhar o que seria esse algo, a presença invisível que volta e meia circunda os filmes de Shyamalan (seja o vento, os extraterrestres ou o apocalipse). Em certo sentido, todos esses elementos são desimportantes, pois funcionam única e basicamente para propulsionar o gesto narrativo. O que ocorre antes ou depois deles serem disparados vale muito mais do que seus significados imediatos. Em Batem à porta o mundo está acabando, e depende única e exclusivamente de Andrew, Eric e Wen para que ele seja salvo. Como em toda provação, cristã ou não, dificilmente a mensagem do sacrifício permite algum tipo de conforto; pelo contrário, sua maquinação trata antes de mais nada de um desarranjo, de algo mordaz. Por isso mesmo que a presença de Leonard e sua trupe na casa de Eric e Andrew reproduz o contrário do que seria a cordialidade — o que está em jogo, nesse caso, é uma misantropia da própria mensagem que os quatro personagens carregam. Para libertar o mundo, antes de mais nada é preciso sofrer, atravessar o vale das sombras sem sair ileso.

A par de todas as estranhezas oferecidas pelo cineasta, seus filmes mais recentes parecem carregar as tintas no que seria a presença de uma fisicalidade exacerbada, quase grosseira, exigindo do espectador um avanço em relação aos seus filmes anteriores. Se antes Shyamalan nos desafiava a perceber aquilo que, no fundo, sempre esteve presente no quadro, agora ele faz com que seus personagens também necessitem presenciar a realidade para aderi-la. Quer dizer, não trata-se mais de pureza ou magia, o instinto agora obriga-nos a lidar sobretudo com a materialidade. Voltemos a Tempo (2021), seu filme anterior, para lembrar de todos os rostos se deteriorando no decorrer dos dias, das escamas da carne sendo digeridas e consumidas através do ar. Lá, os seres não mais teriam que alçar o olhar ao longe, ao indefinido, ao mito, para observar os contornos do universo em seus próprios corpos.

Os rostos depauperados de Batem à porta e Tempo, que indicam a materialidade da mutação, a ação do imaginário em contato direto com o corpo.

Em Batem à porta não é diferente. Se a crença — a suspeição — é o que está em jogo, é necessário retornar ao instinto mais mundano para finalmente permitir-se enxergar o que está na ponta dos olhos. Eric e Andrew apenas aderem a ideia do apocalipse após vê-lo diante dos olhos, pelo tubo da televisão. Essa é uma ideia que se constrói à medida que Shyamalan desfaz esse abismo que existe entre o visto e o não visto, fazendo com que seu cinema, de algum modo, tenha se tornado muito mais prático do que teórico. O enigma, enfim, está a altura de nossos olhos — e não apenas de nossos olhos (espectadores) como também dos olhos dos personagens, unidos por um mesmo eixo e parâmetro. Lembremos de como Wen constantemente é filmada para perceber essa extensão de sentido que o próprio primeiro plano do filme já desenha. Entre um ogro brutamontes e uma garotinha adotada, um plano e contraplano torto já nos informa que é preciso que se encare o temor frente a frente, na mesma altura e no mesmo degrau, pois, conforme os gafanhotos capturados, são todos parte de uma mesma estrutura, de um mesmo ecossistema.

You are all conected, nos avisava Story em Dama na água. Em Batem à porta, o comentário não é tão distinto, mas o cineasta aponta a lupa para outro lado. Se nos filmes anteriores a tragédia se anunciava sempre por conta um elemento místico, dessa vez ela se apresenta por meio da materialidade. Os eventos televisionados que ocorrem após cada sacrifício realizado por um dos quatro mensageiros — Leonard, Redmond, Adriane e Sabrina — não são tão distintos daqueles que qualquer um que ligar em um telejornal pela tarde poderá presenciar. No fim das contas, importa pouco ou quase nada o grau de choque dessas narrativas visuais (ainda que Shyamalan às filme sempre com um louvor invejável, meio grotesco, surrupiado), o que consta como efeito é o quanto é preciso que essas aparições pareçam a realidade mais do que sejam a realidade. É um golpe de ilusionismo, parecido com os que Méliès produzia ao fazer sua cabeça desaparecer do corpo, similar a uma relação que a História do cinema reproduz com sua espectatorialidade. Trata-se de um avanço tirano, aos galopes. Se antes era preciso que o cinema impressionasse (daí as atrações) seus consumidores por conta daquilo que tinha de diferente do mundo e que as outras formas artísticas não poderiam tão bem reproduzir enquanto passividade, agora é o momento de deslocar-se da ilusão para aderir aquilo que aprendemos a chamar de “real”. Muda-se o resultado, mas o truque permanece o mesmo. É tudo uma questão de to believe, de aderir ao gesto.  

Que Batem à porta nos brinde, ao final, com essa sorte do apocalipse ter sido travado pela família Andrew, Eric e Wen é um mero acaso. Afinal, o comentário sobre o mundo, a tal alegoria, no fim das contas, sempre esteve dentro daquela cabana, num simulacro tão comum a tantos outros que o próprio cineasta já forjou — da comunidade de A Vila (2004) à prisão dos heróis em Vidro (2019). Se em algum momento da obra de Shyamalan já nos perguntamos se “a revolução será televisionada”, agora, finalmente, ele nos responde em alto e bom som.

Por Rubens Fabricio Anzolin

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