Ao contrário de boa parte dos filmes contemporâneos, Batem à porta traz no título um sujeito indefinido. O verbo, conjugado na primeira pessoa do plural, fica evidente, mas o agente de sua ação permanece em segredo. Afinal de contas, quem bate à porta? Uma primeira leitura, mais óbvia, seria aquela que a trama do próprio …
Valparaíso, abismo entre luz e sombras
A câmera começa numa pelada de futebol, mas logo vai para uma colina. De repente chega o mar, as ondas, os peixes. Então surgem os corpos dos pescadores e as escadarias intermináveis. É tudo muito concreto, mas também muito abstrato. O olho encontra o horizonte, mas nem sempre é capaz de perfurá-lo. Aquilo que nos …
Na bacia das almas
Tem um elemento que me parece ter sido deixado de lado nas análises de Crimes do Futuro (David Cronenberg, 2022), que é o andar de Viggo Mortensen — o flâneur, o rastejar, o circuito do corpo. De todas as imagens do último filme de Cronenberg, aquela que se apresenta em maior condição de permanência é …
Um filme como os outros
Jamais concordaria que os filmes de Paul Verhoeven merecem qualquer defesa tanto por acreditar que não necessitam de uma como também porque, penso, eles próprios já cumprem tal papel diante da faísca que produzem em um sistema de obras cada vez mais achatado e comportado. Dizer que falar bem de Benedetta é praticar uma defesa …
A maldição do establishment
Existe um tipo de vírus ou maldição que assola o cinema americano desde (quase) sempre. Trata-se, mais especificamente, de um modelo de encenação decididamente asséptica e articulada com os “grandes temas” do momento, algo como colocar na mesa as pautas do dia para, pouco a pouco, desdobrá-las da maneira mais palatável possível ao gosto do …
Depois da miragem
Existe algo fincado bruscamente no coração de Uncut Gems que pretende carregar-nos até o final da toca do coelho. Um elo ou pacto com o demônio que irá levar-nos até onde nada é permitido, ao fundo daquilo que as paredes duras da sensorialidade insistem em negar. Este filme restaura alguma capacidade que detinha William Friedkin …
I’m happy to see you alive
Já faz algum tempo - mais especificamente, desde que passou a viver na Europa - que Abel Ferrara recusa-se a realizar qualquer cinema em que o ensejo principal não seja uma busca de um espaço e de uma amplitude para o corpo poder existir. Foi-se a época em que as imagens poderiam se desvelar aos …
Movimento para inércia
A chave-mestra do cinema de Harmony Korine sempre se deu dentro da segunda ou terceira camada que as suas imagens apresentam. No início, havia por fora a sensação de estranhamento, os corpos tortos e dilacerados de Gummo (1997), a esquisitice desengonçada de Julien Donkey-Boy (1999). Com o passar do tempo, a estranheza material (em tela, …
Descaminhos e descontinuidades
1.Confesso que gostei bastante do último de Spike Lee por que é, antes de tudo, um filme de imagens, um labirinto múltiplo de interpretações e subtextos que se acoplam e constituem. Grosso modo, um filme de colagens, por muitas vezes grotesco e direto e, mais do que qualquer coisa, completamente impróprio ao que o cinema …
Os corpos enjaulados
Tatuagem (2013), primeiro longa de ficção de Hilton Lacerda, foi lançado tem sete anos, mais ou menos na mesma época que comecei a estudar cinema. Até hoje, nunca o vi. Tampouco me veio o interesse de visitar o filme. Digo isso por duas razões: a primeira é para acertar as contas com uma ideia um …